O Trabalho Docente Como um Problema

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Francisco Pablo Huascar Aragão Pinheiro
Professor do Curso de Psicologia da UFC – Campus de Sobral

O objeto de trabalho é aquilo em torno do qual se age de forma coordenada, por meio de instrumentos simbólicos ou materiais, a fim de promover uma transformação, visando a um resultado previamente concebido (MARX, 1982). Diante dessa definição, cabe a pergunta: qual o objeto de trabalho do professor(a)? Ao colocar o trabalho docente como questão, o intuito da discussão aqui empreendida é precisar sobre quem ou o que o professor exerce sua ação a fim de atingir um objetivo específico. Conforme Silva (2009), tal determinação é primordial para o trabalho docente, a fim de que a atuação profissional dos educadores não seja fetichizada, de modo que não se desconsiderem os professores como inseridos na divisão social e técnica do trabalho. A autora afirma:

“De fato, o trabalho docente tem sua especificidade, mas, como qualquer outro, é uma atividade direcionada a um fim e este é a formação humana […] Como um trabalho, a docência está inserida em um processo de trabalho como qualquer outro e, por isso, não pode prescindir de um objeto de trabalho; de meios ou instrumentos para executá-lo; e da própria atividade com um fim determinado. O resultado desse processo é um produto. Assim, a docência é o próprio trabalho que o professor realiza e é nessa atividade que ele empenha sua força de trabalho, constituindo-se num trabalhador”. (SILVA, 2009, p. 74-75).

Depreende-se das afirmações de Silva (2009) que o estudante é o objeto de trabalho do professor e o fim que se busca é sua formação. Reforça-se este argumento com a afirmação de Paro (1986, p. 141 apud HYPOLITO, 1991, p. 16) para quem o aluno é o

“[…] verdadeiro ‘objeto de trabalho’ do processo produtivo escolar, já que ele se constitui na própria realidade sobre a qual se aplica o trabalho humano, com vistas à realização do fim educativo. Isto quer dizer que, a exemplo do que sucede com a matéria-prima no âmbito da produção material, o aluno não sai do processo educativo como era quando aí entrou”.

Em outro trabalho, Paro (1993) ressalva que há diferenças entre o objeto de trabalho considerado na produção material e aquele que é alvo do trabalho pedagógico. A resistência passiva do objeto de trabalho que ocorre na produção material não se aplica ao aluno. Este último resiste ativamente à ação em função de sua condição humana, portanto histórica. Nesse sentido, o estudante é também produtor e não somente alvo de uma ação, ou mesmo mero consumidor da aula que o professor lhe provê. Acrescente-se que

“[…] no processo material de produção, as modificações imprimidas no objeto de trabalho são de natureza material enquanto que a transformação que se dá no processo pedagógico diz respeito à personalidade viva do educando, pela apropriação de conhecimentos, atitudes, valores, habilidades, técnicas etc” (PARO, 1993, p. 105-106).

Ainda considerando a delimitação do objeto de trabalho do docente, é relevante a discussão levantada por Clot (2010). O psicólogo francês ressalta a dificuldade de, em contraponto com a indústria, definir o objeto de trabalho no setor de serviços, no qual pode se inserir a atuação dos professores:

“Com o desenvolvimento dos serviços em que o “objeto” do trabalho – palavra que, praticamente, deve ser escrita entre aspas para esse tipo de funções – é, cada vez mais, a vida do outro, as metas a atingir, sendo os meios para alcançá-las muito mais controvertidos por natureza e, fundamentalmente, discutíveis. O trabalho industrial podia ainda tornar crível a ilusão taylorista segundo a qual é possível separar o trabalho e o pensamento. Mas o trabalho no setor de serviços ainda complica muito as tentativas de separação entre as operações de execução e o sentido da ação. O próprio trabalho impõe uma responsabilidade renovada quanto ao “objeto” e, por isso, a definição das tarefas é influenciada, mais do que em outras circunstâncias, por avaliações conflitantes […] [No setor de serviços] as técnicas são as do uso de si e dos outros, em vez da coisa física. Nos serviços, tudo parece, portanto, complicar o emprego da palavra ofício e, em particular, a “mistura dos gêneros”, incentivada por esse trabalho, entre vida profissional e vida pessoal” (CLOT, 2010, p. 281-282).

Tais considerações parecem se adequar perfeitamente ao trabalho docente. Para o professor, em relação aos seus instrumentos materiais, toda sorte de objetos utilizados na interação com os alunos pode ser elencada: lousa, pincéis, livros, dentre outros. Dentre os instrumentos simbólicos estão as estratégias didáticas construídas a partir de sua formação, da troca de experiências com os colegas e também influenciadas por suas vivências fora da escola. As posturas assumidas e decisões tomadas para a condução da turma são ferramentas essenciais para atuar sobre seu objeto de trabalho, de modo que o “uso de si” referido acima é proeminente.

Some-se a isso que o resultado da ação do docente diz respeito a uma meta a atingir na vida de outra pessoa, mas uma vez concordando com o que foi apresentado por Clot na citação alhures. Espera-se que, ao final de um período letivo, o estudante tenha adquirido conteúdos predeterminados ou assuma posturas e comportamentos desejáveis.

A separação entre concepção e execução também não se sustenta no trabalho docente. O professor é, ainda, senhor de sua ação em sala de aula. O docente mantém autonomia para determinar metodologias e conteúdos (BASSO, 1998). Em contrapartida à sua autonomia, o professor torna-se, como dito anteriormente, ele próprio, instrumento de ação sobre seu objeto de trabalho, donde suas experiências pessoais, assim como suas pré-ocupações, conforme a terminologia aqui adotada, acabam por ser uma fonte infindável de ferramentas para a ação em sala.

É mister sinalizar que tomar o estudante como objeto de trabalho não significa, necessariamente, objetifica-lo e, por conseguinte, alijá-lo de sua condição de sujeito. Tal esclarecimento é relevante tendo em vista a confusão semântica que o uso de tal terminologia pode causar.

REFERÊNCIAS

BASSO, I. S. Significado e sentido do trabalho docente. Caderno CEDES, Campinas, v. 19, n. 44, p. 19-32, abr. 1998.

CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010.

HYPOLITO, Á. M. Processo de trabalho na escola: algumas categorias para análise. Teoria & Educação, Porto Alegre n. 4, p.41-61, 1991.

MARX, Karl. O Capital (crítica da economia política). Livro 1: o processo de produção do capital. São Paulo: Difel, 1982.

PARO,  Vitor  Henrique.  Administração  Escolar:  uma  introdução  crítica.  São  Paulo: Cortez/Autores Associados, 1986.

PARO, V. H. A natureza do trabalho pedagógico. Revista da Faculdade de Educação, v. 19, n. 1, p. 103-109, jan/jun. 1993.

SILVA, Maria Emília Pereira da. A metamorfose do trabalho docente no ensino superior: o impasse nas licenciaturas. 2009. 181 f. Tese (Doutorado em Políticas Públicas e Formação Humana) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.