Não há centro em Bagdá

bagdadAda Kroef[1]

   Gisele Gallicchio[2]

Resumo: Este artigo propõe analisar a arte como composição a partir do filme Bagdá Café, de Percy Adlon, utilizando alguns conceitos de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari.

 

Palavras-chave: criação, magia e intercessores qualitativos.

Arte é o que resiste.

        Gilles Deleuze

O filme Bagdá Café, de Percy Adlon, é uma história de rupturas, desvios, encontros e paixões provocados por intercessores qualitativos. Encontros-roubos e paixões-afectos que levam a personagem Jasmim a interceptar a repetitiva rotina de Brenda em seu mundo: o Bagdá Café. Nestas relações, produzem o encantamento da vida, cuja magia e poesia marcam os processos de singularização.

Bagdá Café é o título mais conhecido do filme. Porém, ele também recebeu o nome de Out of Rosenheim, sugerindo linhas de fuga e criações assinaladas neste artigo. Este filme dispara vários conceitos propostos por Foucault, Deleuze e Guattari: a vida tornada arte, os intercessores qualitativos, a criação como afirmação da diferença e dos processos de singularização.

Arte-magia pela sua capacidade de encantamento e transformação do mundo. Arte exercida por e em Jasmim que, ao escapar dos padrões estabelecidos, intervem nos estados e nas relações instauradas no café, produz afectos alegres, cria um novo estilo de vida, um novo modo de existência: um modo mágico de impregnar a vida.

Deleuze ressalta Foucault, afirmando a vida como obra de arte, destacando não apenas uma estética, mas também uma ética: São estilos de vida, sempre implicados, que nos constituem de um jeito ou de outro (…) há nisso toda uma ética, há também uma estética. O estilo, num grande escritor, é sempre também um estilo de vida, de nenhum modo algo pessoal, mas a invenção de uma possibilidade de vida, de um modo de existência[3]. Portanto, conceber a vida como arte não significa remetê-la à representação, mas produzir possibilidades de existência, modos, que rompem com a moral e seus modelos transcendentais, num movimento de fuga, instituindo outras maneiras de viver. A arte não é uma esfera separada da vida, que a recorta, circunscreve, representa. A arte também não é um bem que indica o grau de conhecimento e cultura daquele que a detém; nem uma linguagem técnica que mede o talento do autor.

A arte, para Deleuze e Guattari[4], não representa, ela consiste em um bloco de sensações composto por perceptos e afectos que atravessam planos, constituindo percepções e possibilidades de existência de mundos, os quais tendem a ser aprisionados pela representação.

A representação indica, nos diferentes planos (estético, político, psíquico, econômico…), o rebatimento sobre o Mesmo. Ela implica na forma de consciência e de identificação social, na inclusão em um modelo, o qual serve como o instrumento para avaliar e garantir a reprodução de comportamentos, significados e valores. Esta forma de distribuição e classificação, que utiliza modelos para comparar, identificar, ordenar e rebater pela representação atravessa tanto o conhecimento científico, quanto o domínio artístico e as práticas cotidianas.

Conforme Deleuze, o platonismo funda o domínio da representação, definido numa relação intrínseca ao modelo e fundamento[5]. A representação consiste na adequação entre a idéia e a coisa, o abstrato e o real, a fim de discernir o verdadeiro do falso. Platão erige um modelo, uma espécie de identidade pura, existente no Mundo das Idéias que serve de fundamento (original) para selecionar e classificar as cópias, as coisas que pertencem ao Mundo Sensível. O critério para a comparação entre cópias e modelo é o da semelhança, da igualdade, que, através de um processo de identificação, separa as cópias boas das ruins numa relação hierárquica.

O domínio da representação passa a ser também o critério para a apreensão da realidade segundo regras bem definidas pelo racionalismo e pela reflexão crítica, que operam com as binaridades e com as dicotomias, distinguindo o real do irreal, o verdadeiro do falso. A percepção da realidade restringe-se ao referente como um modelo transcendental. Freqüentemente, a arte é delimitada como representação estética que reflete a realidade e indica o grau de consciência, conhecimento e integração social. Numa perspectiva crítica, Hauser afirma que a arte representa a realidade[6]. Deste modo, pode servir de instrumento de diagnóstico, de medição para aquisição de consciência desta realidade através do domínio de códigos preestabelecidos, de significações e interpretações previamente determinadas como verdadeiras segundo modelos científicos ou artísticos.

A arte, tanto pela perspectiva platônica quanto pela crítica, erige o modelo. O artista possui domínio da técnica, das idéias e do conhecimento teórico que definem o critério de originalidade, de estilo, de autenticidade. Ele possui o poder de legitimar significados e sentidos representativos, instituindo o padrão. As produções artísticas, especialmente as com fins sociais, produzem sentidos estabelecidos como realidade. Assim, as cópias passam a demarcar a inclusão em um padrão pelo compartilhamento e apropriação dos códigos predefinidos. As cópias são utilizadas para classificar hierarquicamente, corrigir, padronizar, normalizar em conformidade com o modelo referente, o do artista. A arte, neste sentido, julga, separa e hierarquiza.

As composições estéticas que utilizam matérias expressivas, escapando da representação, remetem à invenção de modos de existência. O princípio de igualdade é abandonado, as diferenças transformam-se em singularidades com intensidades e consistências que não podem mais ser mensuradas, rompendo com as escalas e gradações classificatórias, hierarquizantes e segregativas. A criação rompe com a representação e com o modelo-referência, com a realidade compreendida em essência e aparência. Ela escapa às fórmulas de inclusão porque não há mais centro aonde ser incluído, não há mais padrão referencial indicando graus de hierarquia, carências, etc. Há trocas e devires com inúmeros vetores.

No cinema, as imagens são signos. As imagens não se definem por representar universalmente, e sim, por singularidades, pelos pontos singulares que junta. O cinema constrói uma imagem do pensamento, dos mecanismos do pensamento. A relação do cinema com a filosofia é a relação da imagem com o conceito. Na filosofia, os conceitos são exatamente como sons, cores ou imagens[7]. Eles adquirem movimento. A introdução do movimento no conceito se faz exatamente na mesma época em que se introduz o movimento na imagem[8]. O cinema é a imagem-movimento. Ele cria o automovimento da imagem, uma autotemporalização da imagem. Nele, a cisão entre o real o irreal não é mais discernível.

Assim, arte é inseparável da vida. Ela permeia as relações cotidianas, inventando algo novo entre seus componentes, novas posturas e concepções encarnadas nas práticas. Esta é a magia do filme. Magia que, simultaneamente, atravessa a personagem Jasmim, consistindo na potência de contaminação que altera e encanta pelas novas possibilidades de produzir-se com o mundo. Jasmim torna-se um intercessor qualitativo que rompe, perturba e cria um novo estilo de vida com Brenda, ao mesmo tempo, que compõe a história narrada em Bagdá Café.

No meio do deserto, a caminho de Las Vegas, Jasmim e seu marido discutem. Muitos traços demarcam este típico casal de turistas alemães: a cerveja, a música, o charuto, as roupas e os acessórios. Em uma parada, após várias grosserias e pequenas agressões, Jasmim decide abandonar o marido. Com sua mala, segue pelo deserto, percorrendo o silêncio e a incerteza.

A música germânica tocada em alto volume durante a escaldante viagem imprime um ritmo que contrasta com o silêncio na travessia do deserto. Silêncio que assinala uma quebra. Silêncio-resistência, desvio, vacúolo. Resistência às palavras de ordem da linguagem, fazendo de Jasmim uma estrangeira a este ordenamento de sons.

Durante o trajeto, há uma alteração de velocidade que imprime uma lentidão no deslocamento pelo deserto. Trata-se da velocidade do nômade em seu vetor de desterritorialização. O relativo é a velocidade de um movimento considerado de um ponto a outro. Mas, o absoluto é a velocidade do movimento entre os dois, no meio dos dois e que traçam uma linha de fuga. A velocidade absoluta é a velocidade dos nômades, até mesmo quando eles se deslocam lentamente[9].

No deserto, Jasmim vê dois pontos de luz no céu. Nesta imagem, aparece entre eles, sugerindo o nomadismo. Comumente, interpreta-se estes pontos de forma dual, remetendo-os a dois sujeitos: ora Jasmim e Brenda, ora Sra. Munchstettneer e Sra. Jasmim, caindo na armadilha da alteridade: o Mesmo e o Outro. A mesma luz que se refrata e se reflete em outra, numa espécie de identificação em que o sujeito atinge sua consciência, sua unidade e sua essência. A trajetória de Jasmim não é de identificação, mas de composição, marcada pelo inesperado, pela singularidade, pela multiplicidade.

Deleuze e Guattari afirmam que as multiplicidades ultrapassam a distinção entre a consciência e o inconsciente, entre a natureza e a história, o corpo e a alma. Para eles, as multiplicidades são a própria realidade, entendida como um número de dimensões finitas que ela preenche, não supondo nenhuma unidade, não entrando em nenhuma totalidade e tampouco remetendo a um sujeito[10]. Ocorre uma ruptura com a noção de sujeito, pois não há unidade que sirva de pivô no objeto ou que se divida no sujeito. Uma multiplicidade não tem sujeito, nem objeto, mas somente determinações, grandezas que não podem crescer sem que mude de natureza[11]. A multiplicidade não significa múltiplo, não remete à multiplicação de elementos, nem ao Uno que se divide pela lógica binária. Não são nem os elementos, nem os conjuntos que definem a multiplicidade. O que a define é entre os conjuntos. O que a define é o E, como alguma coisa que ocorre entre os elementos ou entre os conjuntos. E, E, E, a gagueira. Até mesmo, se há apenas dois termos, há um E entre os dois, que não é nem um, nem outro, nem um que se torna o outro, mas que constitui, precisamente, a multiplicidade[12]. Ela é constituída pela linha de fuga. As multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abstrata, pela linha de fuga ou de desterritorialização segundo a qual elas mudam de natureza ao se conectarem às outras[13]. A história do Bagdá Café marca as linhas de fuga e os agenciamentos que mudam suas dimensões numa multiplicidade à medida que ela aumenta suas conexões.

O marido de Jasmim, seguindo outra direção, deixa na beira da estrada a garrafa térmica de café de Rosenheim. Neste enquadramento da estrada, uma enorme garrafa amarela se sobressai, atraindo a atenção de Sal. Outra parada. Novo encontro. Um estranho oferece carona a Jasmim que recusa assustada. Na caçamba da caminhonete, a garrafa amarela segue um novo percurso. Ela ressurge no Bagdá Café. Sal, marido de Brenda, deveria ter ido à cidade buscar a máquina de café que havia estragado. Desvio e esquecimento. Ao invés da máquina, traz a térmica que produz um incômodo terrível à sua mulher. Objeto diferente que deve pertencer a alguém, conter veneno, ser perigoso. Um intercessor qualitativo que desfaz o esperado; perturba a rotina, provoca estranhamento, gera ruptura. Brenda discute com o marido, o qual ameaça abandoná-la. Ela o enxota com latas vazias. Sal parte, passando a observá-la à distância.

Chorando, Brenda percebe ao longe uma mancha escura que se aproxima como uma espécie de aparição, uma miragem no deserto. O encontro Jasmim-Brenda produz um curto–circuito, uma captura de códigos, onde cada uma se desterritorializa. Jasmim torna-se ser de sensação, ser de fuga, não carne, mas o composto das forças não-humanas do cosmos, dos devires não-humanos do homem que a fazem turbilhonar como os ventos – ventos do deserto. Ventos que aparecem na canção: Um vento seco e quente sopra e me atravessa; O bebê chorando e não consigo dormir; Mas nós sabemos que uma mudança vem chegando; Tornado-se mais perto, doce fuga[14].

Quando Jasmim com traje sóbrio, chapéu de plumas e postura militar pára em frente a Brenda e solicita hospedagem no hotel, provoca uma suspeita. Brenda surpreende-se com a possibilidade dela permanecer no local. Estranhamento mútuo. Brenda com seu senso de realidade questiona a proveniência de Jasmim, já que ela apareceu sem carro e sem companhia (sem marido). Jasmim observa a sujeira e a bagunça do escritório. Olha para Brenda, que usa um lápis atravessado no cabelo, e se imagina dentro de um caldeirão durante um ritual selvagem.

Brenda insiste sobre a breve estadia da nova hóspede. Jasmim mantém-se evasiva, corrigindo Brenda que a chama pelo nome: meu nome é senhora Munchstettneer. Em seguida, Jasmim pergunta se o centro é longe. Brenda responde: Que centro? O shopping-center? O centro de Bagdá, afirma Jasmim. Isto é Bagdá, diz Brenda. Isto é tudo? Interroga, Jasmim. Isso… É isso, ironiza Brenda.

Não há centro em Bagdá. Há o deserto e a estrada, sua vizinha. Quando comparado a um modelo de hotel e café, Bagdá corresponde à precariedade, à carência, ao abandono. Entretanto, este lugar considerado perdido adquire novo sentido, deixando de ser privação para se tornar desvio: Uma estrada deserta de Vegas à parte nenhuma; Algum lugar melhor do que onde você tem estado; Uma máquina de café precisa de conserto; Num pequeno café próximo à curva[15]. Na curva, num movimento transversal, uma linha escapa. Fugir é traçar uma linha, linhas (…). Só se descobre mundos através de uma longa fuga quebrada[16]. Bagdá Café traça linhas de fuga, linhas que só passam pelo território para abri-lo no deserto, dissolvendo a identidade do lugar. Ele é, simultaneamente, zona de passagem e território. O território é, ele próprio, lugar de passagem. Todo agenciamento é territorial[17]. O agenciamento territorial implica uma descodificação, pois ele não é separável de uma desterritorialização que o afeta[18]. Zona que se mistura ao deserto, tornando-se quase imperceptível a quem se destina ao centro (Las Vegas). Também é território, Bagdá-casa, para seus habitantes. Um café sem café, cujos componentes marcam a excentricidade, traçando fronteiras e definindo o que é familiar.

Bagdá agrega, além de Brenda e seu marido, os filhos, Sal Jr.e Phillys, o bebê, Cahuenga (o índio que atende no balcão), Rudy-Cox (ex-cenógrafo de Hollywood e pintor que mora num trailer ao lado do hotel), Debby (a tatuadora supostamente muda) e, posteriormente, Eric (o jovem do bumerangue que passa a acampar no local). Os demais são considerados estrangeiros ou clientes. Como território, o Bagdá Café engloba e recorta outros territórios, intercepta trajetos; formando junções, composto de sensações, composições. É que o território não se limita a isolar e juntar, ele abre para forças cósmicas que sobem de dentro ou que vêm de fora, e torna sensível seu efeito sobre o habitante[19]. Jasmim é uma forasteira. Ela vem de um lugar desconhecido da Alemanha. Chega só, trazendo consigo roupas esquisitas e masculinas, age de forma estranha, como se fosse ficar para sempre. Estes motivos levam Brenda a chamar a polícia para averiguação de sua periculosidade. Jasmim constitui uma ameaça por não fazer sentido, não se enquadrar em nenhum padrão. Para o xerife, Jasmim continua sendo apenas uma turista.

Tanto quanto a garrafa, Jasmim altera o cotidiano do Bagdá Café. Ela intercepta seus fluxos, produz tensões, modificando as relações de forças. Brenda parte para as compras na cidade. Jasmim aproveita a ocasião e limpa seu escritório, retirando um enorme entulho.  A ação de Jasmim provoca Brenda que, ao retornar e se deparar com tudo reordenado, pergunta aos gritos: Meu escritório! Quem foi?! Jasmim, com o bebê no colo, responde receosa: Eu… pensei que fosse gostar; fosse ficar feliz. Brenda resiste, exigindo que tudo seja colocado de volta. Quando Jasmim inicia este movimento, Brenda manda parar.

Jasmim não organiza no sentido higienista e disciplinar. Ela retira obstáculos da rotina de Brenda em direção a novos fluxos que possibilitam novas sensações. Um movimento ético-estético que faz Brenda sentir-se bem em seu escritório. Uma mudança de concepção disparada acerca de seu modo de vida.

No café, Jr. pratica piano exaustivamente. Um exercício de técnica, repetição e destreza que Brenda define como uma máquina de costura. A chegada de um cliente sinaliza o momento em que Jr. deve parar de tocar. O silêncio do piano é exigido com a entrada de Jasmim, reforçando que ela é uma estranha.  Jasmim, que senta à mesa localizada na fronteira, ao lado da porta, busca acolhimento. Olha para Jr., sorri para Phillys. Desprezo. A recusa é fortalecida pela resposta de Brenda aos filhos, mencionando que os demais presentes no local são como da família. Raiva contida e tristeza. No quarto, Jasmim chora. Vê sobre a mesa a caixa de mágicas. Nova interceptação, a caixa gera uma mudança de estado, assinalando a passagem de um afecto triste para um afecto alegre.

Deleuze, baseado em Espinoza, distingue afectos de afecções[20]. As afecções são os próprios modos. Elas designam o que sucede ao modo, as modificações do modo, os efeitos de outros modos sobre si. A afecção remete ao estado do corpo afectado e implica, simultaneamente, a presença do corpo afectante. Portanto, as afecções exprimem encontros entre modos existentes. Já os afectos são durações ou variações. Durações vividas que encerram a diferença entre dois estados. Os afectos-sentimentos são paixões. Paixões tristes e paixões alegres que se definem, respectivamente, pela diminuição e pelo aumento da potência de agir. A potência de agir varia segundo causas exteriores para um mesmo poder de ser afectado. A magia produz afectos alegres, aumentando a potência de agir, provocando deslocamentos nos encontros e mudanças nos modos de existir. Do afecto alegre emana uma afecção, a amizade.

Jasmim encontra Phillys bisbilhotando as esquisitas roupas em seu quarto. Após o susto, satisfazem suas curiosidades, dançam, riem, tornando-se amigas. No café, Jr. executa o prelúdio de Bach[21] com velocidade e técnica fabris. No momento que Jasmim entra, ele cessa. Jasmim pede que siga tocando. Jr. ri, retomando o prelúdio em alta velocidade. Jasmim senta para ouvi-lo, num movimento de desaceleração. Magia da interceptação. Jr. espanta-se ao perceber a atenção de Jasmim, interrompe a música e recomeça em outro ritmo. Ela sorri para ele, fecha os olhos e se deleita. Magia da transversalização que assinala um demorar-se nas coisas e nos acontecimentos, consistindo em uma ruptura com a lógica capitalística baseada no desempenho e na produtividade. Um novo ritmo se estabelece nestas relações. Sem eles perceberem, Rudy assiste silenciosamente este encontro que é interrompido pelos gritos e queixas de Brenda. Jr. retruca, dizendo que Jasmim é a única pessoa que realmente entende sua música.

A transformação de Jasmim atravessa o cotidiano. Cotidiano marcado pelo bumerangue de Eric[22], com quem ela aprende a jogar. Um movimento que adquire um caráter lúdico, aproximando Eric de Phillys e de Jasmim. Em suas voltas, o bumerangue nunca retorna para o mesmo lugar, assinalando a diferença na repetição dos atos habituais. Diferença cuja magia comporta a força de encantar o dia-a dia.

Jasmim atrai. Em seu quarto, Phillys experimenta suas roupas, Jr. toca seu teclado e ela brinca com o bebê. Brenda surge. Enciumada, xinga Jasmim e os filhos, retirando todos do quarto. Antes de fechar a porta, diz: Vá brincar com seus filhos! Jasmim, com uma intensa tristeza no olhar, responde: Eu não tenho nenhum. Palavras-mágicas que fazem Brenda retornar ao quarto, desculpando-se. A porta se fecha. No café, as duas passam a se chamar por Srta. Jasmim e Srta. Brenda. Um encontro que gera afecções, mudanças de estados e de modos de existir. Neste encontro, um duplo roubo que não diz respeito à posse ou à propriedade. O roubo realiza um movimento de desterritorialização. Encontrar é achar, é capturar, é roubar, mas não há método para achar, nada além de uma longa preparação. Roubar é o contrário de plagiar, de copiar, de imitar ou de fazer como. A captura é sempre uma dupla-captura, o roubo, um duplo roubo, e é isso que faz, não algo de mútuo, mas bloco assimétrico, uma evolução a-paralela, núpcias, sempre “fora” e “entre” [23]. Encontro que afirma a singularidade: Achar, encontrar, roubar, ao invés de regular, reconhecer, julgar[24].

Há uma desterritorilização do Bagdá Café disparada pelo aparecimento de Jasmim. Ela ocupa o deserto num nomadismo, interceptando fluxos, desordenando o cotidiano, produzindo novas composições que transformam Bagdá-casa em Bagdá-magia.

O deserto deixa de ser deserto para tornar-se um simples solo ou suporte, um espaço liso. Deserto desterritorializado, habitado pelo nomadismo, pelo pensamento-nômade. O nômade cria o deserto tanto quanto é criado por ele[25]. Ele é o vetor de desterritorialização. Acrescenta o deserto ao deserto, por uma série de operações locais cuja orientação e direção não param de variar[26]. Jasmim torna-se nômade quando deixa ser turista, que percorre a estrada em direção a um centro. Ela passa a deslizar no deserto num movimento de desterritorialização.

Neste movimento, instaura-se um processo de abandono de um território padrão da mulher germânica, civilizada, disciplinada e dura para produzir-se algo diferente. Fazer do pensamento uma potência nômade, não é obrigatoriamente mover-se e sim abalar o modelo[27]. A estética de Jasmim indica esta transformação que é inseparável da concepção de mundo nela/por ela criada. Rudy detecta este processo apresentado em cada um dos seus quadros, os quais são atravessados por uma potência de desenquadramento, abrindo-se para um campo de forças infinitas. O encontro Jasmim-Rudy Cox não fica na moldura, ele sai da moldura e não começa com ela.  É no momento em que Jasmim senta perto de Jr. e fecha os olhos para ouvir sua música que Rudy se encanta. O rosto de Jasmim se ilumina e ele traça um quadro, um quadro-potência, que inaugura uma série de outros. O visível, para ele, são as cintilações, os efeitos de luz em seu rosto, em seus cabelos. Jasmim torna-se um ser de paixão.

No quadro, eleito como o primeiro, Jasmim, aparece sentada, com seu sóbrio traje negro e o peculiar chapéu, segurando um ovo. O ovo para Deleuze e Guattari é uma superfície de desterritorialização, um corpo sem órgãos. O corpo sem órgãos é um ovo: atravessado por eixos e limiares, latitudes, longitudes, geodésias, atravessados por gradientes que marcam as transformações, as passagens e o destino que nele se desenvolve. Aqui nada é representativo, tudo é vivido[28]. A emoção vivida em mostrar os seios que, a cada quadro, ficam nus, acompanhados de frutas e, finalmente, de uma rosa (antes da nudez total do corpo) não é uma representação. Os seios não são uma representação, tal como uma zona predestinada do ovo a que dará origem, mas uma experiência dilacerante, faixas de intensidades, potências, limiares e gradientes. Variações que constituem afectos, paixões. Uma paixão não diz dos sujeitos, mas de um campo eletromagnético que indica uma potência de agir, que abre um corpo para ser afectado por um maior número de coisas, que opera por intensidades, campos e não pessoas ou identidades. As diferentes frutas ganham fendas, as roupas de Jasmim se abrem, os seios aparecem, o corpo se estende, indicando conexões que instituem o processo mágico de transformação da vida.

A garrafa térmica, Jasmim, a caixa de mágica, a mala com roupas masculinas são intercessores que levam a desvios e a criações. O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem eles não há obra. Podem ser pessoas, mas também coisas, plantas, até animais… Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores[29].

Os intercessores têm o poder de produzir afectos, abrindo os corpos para diferentes maneiras de existir.  Daí, sua força de encantamento. O Bagdá Café ganha esta força, atravessado pela magia contagiante de seus componentes. Um novo modo de viver é criado com novo ritmo, o qual mistura o prelúdio de Bach ao swing e ao canto de Brenda, em que: E nada é tão trágico, porque isso tudo é mágico…[30].

Deleuze e Guattari apontam tudo o que é preciso para fazer arte: uma casa, posturas, cores e cantos – sob a condição de que tudo isso se abra e se lance sobre um vetor louco como uma vassoura de bruxa, uma linha de universo ou de desterritorialização[31]. Esta é a magia, a arte de compor-se com mundo, de transformar o cotidiano, de romper com a repetição, de afectar-se pelas forças, atribuindo um sentido sempre diferente e inusitado, mágico. Composição, composição, eis a única definição de arte. A composição é estética, e o que não é composto não é uma obra de arte [32]. Composição que também é ética, quando na última cena Rudy pede Jasmim em casamento e ela responde que irá conversar com Brenda. Trata-se de uma arte-vida que conjuga o território e a desterritorialização, os compostos finitos e o grande plano de composição infinita. Arte que mistura magia e deserto.

 

Referências Bibliográficas

 

DELEUZE, Gilles.  Lógica do Sentido. São Paulo, Ed. Perspectiva , 1998.

__________ . Conversações. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992.

__________ . Espinoza e os Signos. Porto-Portugal, Ed. RÉS, s/d.

DELEUZE, Gilles & PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo, Ed. Escuta, 1998.

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992.

__________ . Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1995, v.1.

__________ . Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo, Ed. 34, 1997, v. 4.

__________ . Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo, Ed. 34, 1997, v. 5.

__________ . O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia, Assírio & Alvim, s/d.

HAUSER, Arnold. A Arte e a Sociedade. Lisboa, Ed. Presença, s/d.

 

 

Texto publicado na “Contrapontos”,  vol. 5 nº 2 – UNIVALI, Itajaí,, mai/ago 2005.



[1] Socióloga (PUCRS) e Doutora em Educação (UFRGS). E-mail: necakroef@terra.com.br

[2] Historiadora (UFRGS) e Mestre em História (PUCRS). E-mail: gigallicchio@terra.com.br

[3] DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992, p. 126.

[4] Cf. DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992.

[5] Cf. DELEUZE, Gilles.  Lógica do Sentido. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1998.

[6] HAUSER, Arnold. A Arte e a Sociedade. Lisboa, Ed. Presença, s/d, p. 8.

[7] DELEUZE, Gilles & PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo, Ed. Escuta, 1998, p. 2.

[8] DELEUZE, Gilles. Conversações…,p. 152.

[9] DELEUZE, G. & PARNET, C. Diálogos…, p. 41.

[10] DELEUZE, Gilles. & GUATTARI, Félix.  Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1995, v. 1, p. 8.

[11] DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil Platôs…, v. 1, p. 16.

[12] DELEUZE, G. & PARNET, C. Diálogos…, p. 45.

[13] DELEUZE, G. & GUATTATI, F. Mil Platôs…, v. 1, p. 17.

[14] Tradução livre do fragmento da canção Calling You de Bob Telson: A hot, dry wind blows right through me; The baby’s crying, and I can’t sleep; But we both know a change is coming. Coming closer, sweet release.

[15] Conforme a letra da música: A desert road from Vegas to nowhere; Some place better than where you’ve been; A coffee machine that needs some fixing; In a little café just around the bend. Tradução livre.

[16] DELEUZE, G. & PARNET, C. Diálogos…, p. 49.

[17] DELEUZE, Gilles. & GUATTARI, Félix.  Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo, Ed. 34, v. 4, 1997, p. 132.

[18] DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mi Platôs…, v. 4, p. 150.

[19] DELEUZE, G. & GUATTARI, F. O que é a Filosofia?…, p. 240.

[20] DELEUZE, Gilles. Espinoza e os Signos. Porto-Portugal, Ed. RÉS, s/d, p. 49-51.

[21] Prelúdio em Dó Maior para Cravo Bem-Temperado de Johann Sebastian Bach.

[22] O bumerangue é conhecido como arma de arremesso usada pelos índios australianos que, após realizar várias curvas, volta a um ponto próximo daquele de onde foi atirada.

[23] DELEUZE, G. & PARNET, C. Diálogos…, p. 15.

[24] DELEUZE, G. & PARNET, C. Diálogos…, p. 16.

[25]DELEUZE, Gilles. & GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo, Ed. 34, 1997, v. 5, p. 53.

[26] DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil Platôs…, v. 5, p. 53.

[27] DELEUZE, G. & PARNET, C. Diálogos…, p. 42.

[28] DELEUZE, Gilles. & GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia, Assírio & Alvim, s/d, p. 20.

[29] DELEUZE, Gilles. Conversações…, p. 154.

[30] Fragmento retirado da canção Brenda, Brenda de Bob Telson, Lee Breuer e Percy Adlon , que compõe o filme: And nothing is so tragic; ’cause it’s all about magic... Tradução Livre.

[31] DELEUZE, G. & GUATTARI, F. O que é a Filosofia?…, p. 329.

[32] DELEUZE, G. & GUATTARI, F. O que é a Filosofia?…, p. 247.