ENSAIO SOBRE INFÂNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE: DESAFIOS QUE EDUCAM PARA A VIDA EM SUA POTENCIALIDADE.

Historicamente no ocidente, as realidades das crianças e instituições socializadoras como a família e a escola vêm sofrendo inúmeras transformações que deflagram novas demandas socioculturais em tempo de mundialização. A contextualização das condições políticas nacionais em relação à genealogia simbólica e a efetiva produção da cultura brasileira é uma metodologia necessária para o conhecimento e ampliação da concepção de novos caminhos para a sustentabilidade.

A formação das crianças em espaços educativos legitima uma noção equívoca da mesma como um ser do e para o futuro. Nesse sentido, a educação em vigor respalda-se em processos hegemônicos de socialização e direciona o contato da criança com o mundo naturalizado, sem a preocupação de gerar modos e espaços criadores de modelos culturais ou de condições identitárias pertinentes ao território de vida de cada um e de todos.

De acordo com Debertoli (2008) a afirmação de que a infância como construção social e cultural talvez seja na atualidade uma análise compartilhada por todos, leva a premissa de que a criança não é uma ideia abstrata, muito menos natural, menos ainda neutra. Atribuir tal condição sociocultural a criança é obscurecer o olhar para o potencial humano das redes de convívio da qual ela constitui e constrói.  Conforme Castro (2001, apud Debortoli et al., 2008, p.44) é preciso gerar novo foco:

Desfocar o debate sobre uma suposta inferioridade ou incompetência da criança em relação ao adulto, para colocá-la em termos processuais e relacionais, buscando os significados que emergem na ação e da ação das crianças, mesmo ainda mergulhadas em relações desiguais de poder e saber. (…) O conhecimento da infância se revela na capacidade de reconhecer as várias e surpreendentes formas de expressar sua ‘voz’ e de agir no mundo.

Por outro lado, os educadores sempre encontram formas alternativas de tornar os modos e espaços de aprendizagem mais atraentes e acolhedores aos alunos e familiares. E para isso, aproximam-se da arte para gerar envolvimento e produtividade entre os alunos, da brincadeira como entretenimento, do lúdico como uma recompensa na relação com o dever moral ou cognitivo das crianças; enfim, tratam das criações culturais como práticas paralelas às incumbências oficiais dos centros educacionais e espaços institucionais de acolhimento às crianças. As ações artístico-culturais são consideradas iniciativas suplementares e nem sempre estão previstas nos projetos pedagógicos dessas instituições; como também os espaços culturais são restritivos à participação das crianças. Seriam apenas a escola e a família espaços educativos?

Como diz Walter Benjamin, “onde as crianças brincam, existe um segredo enterrado” (2002, p.142). As ruas, praças e avenidas também guardam histórias, mostram cultura; museus são locais que guardam tesouros, os quais estão esperando por nossa escavação e empoderamento. Mas esses não são considerados espaços infantis! A criança é responsabilidade do mundo como história e como sujeito, temos que aprender a compartilhar esse cuidado com todos. Como lembra Todorov, (apud Debertoli, 2008) o isolamento dos sujeitos constitui uma das primeiras formas de renúncia à autonomia.

O mundo adulto tem como dever oferecer a elas um contexto lúdico espacial com qualidade e segurança. Oferecer às crianças uma possibilidade de tornar visível o invisível em uma cidade mesmo sabendo que devemos superar suas antíteses urbanas. Segundo Leite (2011, p.49):

O artista Paul Klee dizia que a arte tornava visível, o invisível. Em visibilidade, elejo destacar as ações lúdicas envolvidas com as linguagens artístico-culturais – as artes visuais (fotografia, desenho, pintura, cinema etc.), artes cênicas, a dança e a música. As diferentes experiências artístico-culturais das crianças, na medida em que favorecem a experimentação e a expressão pessoal, ressignificando a história do homem e da natureza, em sua complexidade, de forma plural, não linear e multifacetada, tornam visível o invisível.

A cultura constitui-se como um campo de conteúdos e símbolos eivado de possibilidades educativas, principalmente, no contexto infantil. Esse é um espaço de curiosidade, descoberta e sonhos, que vão ao encontro da necessidade permanente que a criança tem de investigar e indagar sobre o mundo, já que a cultura evoca a diversidade humana. Assim, as crianças podem dedicar-se a acolher a pluralidade dos modos de ser, pensar, agir, viver, sentir e expressar-se em sua singularidade ao conectar-se com a pluralidade de sentidos que esse campo produz.

Sabe-se que, como as demais manifestações culturais, a ludicidade é um fazer cultural para a infância, é no brincar que a criança expressa sua cultura de forma autêntica e espontânea. Neste sentido, o lúdico é uma expressão da cultura infantil, cuja diversidade se regula pelas singularidades comunitárias e societais, demarcadas geo-historicamente.

Estudiosos do desenvolvimento humano – sejam das abordagens psicogenética, psicanálise, sociocultural, psicodramática, neurocientíficas – apontam para a  primeira infância como um momento de profunda emergência das potencialidades humanas, em sua constituição física, psíquica, biológica, social, cultural e política. A abertura do indivíduo nesse momento da vida lhe permite a apreensão de códigos culturais de forma complexa e integral. A curiosidade e as descobertas são constantes e promotoras de mais e mais condições para que o ser se desenvolva em sua plenitude. Porém, também é sabido que os impeditivos socioculturais, econômicos, afetivos entre outros, são fatores que conformam (quando não deformam) a construção da subjetividade e da identidade dos sujeitos. Nesse sentido, é urgente debruçar-se sobre tais aspectos e gerar políticas públicas que garantam condições básicas e necessárias para o desenvolvimento humano integral e profundo das crianças, sendo concebidas como sujeitos em condições cidadãs de existência na cidade.

Para tanto faz-se fundamental identificar quais são os trabalhos educativos que respeitam as singularidades individuais, comunitárias, territoriais e consideram a dinâmica cultural planetária, a ancestralidade e a contemporaneidade, a fim de legitimá-las como práticas lúdico-culturais que favorecem a formação integral do sujeito desde a infância e para além dela. Cabe, portanto, refletir sobre questões geradoras de caminhos capazes de dimensionar as políticas públicas de cultura para a infância. Tais como:

  1. Como compreender o processo de desenvolvimento humano em que a efetividade das ações culturais durante a infância seja deflagradora de identidades planetárias enraizadas e territorializadas?
  2. Como essa circunstância educativa pode ser avaliada e, consequentemente, gerar indicadores dos impactos por ela deflagrados?
  3. Quais seriam as condições em que se encontram os espaços educativos e acolhedores das crianças brasileiras para a realização de ações culturais relevantes ao desenvolvimento integral do ser humano?
  4. Que ações culturais são possíveis para se métodos potentes na educação infantil?
  5. Como se posicionam os educadores em relação às questões de produção cultural junto das crianças nas creches e escolas da rede pública?
  6. Quais propostas de educação e cultura existem entre os profissionais que se dedicam a realizar ações culturais nas instituições de ensino, sejam artistas, professores, mestres da tradição etc.?

Há que se pensar a escola como um lugar para a participação plena dos indivíduos na construção social da realidade e, também, como locus da diversidade cultural presente no território. Como equipamento social e estatal congrega tal diversidade, mas não se atenta a ela, ou não se dedica a evidenciá-la mediante à homogeneização que o sistema educacional racionalista prevê. Contudo, é fundamental que ações públicas sejam elaboradas de modo a permitir um novo olhar para os espaços formadores e uma nova composição pedagógica voltada às produções simbólicas enraizadas no território e à constituição da plena da cidadania desde os primórdios de vida do sujeito.

Essa perspectiva, necessariamente, se volta à dimensão cultural da educação atentando-se ao conteúdo artístico e às formas constitutivas das ações poéticas em sua ludicidade e expressão. Dotadas de potências semânticas e afetivas, tais ações favorecem e/ou facilitam a perpetuação e/ou transformação ética da sociedade. A singularidade de cada território e a rotina do cuidado como base das relações interpessoais e institucionais são fundamentais para gerar espaços educadores e promotores da cultura – experimentam-se enquanto coletivo e criam [enquanto preservam] valores e símbolos que lhes são próprios.

O indivíduo que recebe cuidados pode gerar cuidados consigo, com o outro e com o todo. Assim, a primeira infância, em tempos planetários, precisa ser amparada éticopoliticamente para que experimente situações de acolhimento intergeracional como parte da vida cultural nas cidades.  A vivência de jogos, contações de histórias, teatro de bonecos, mamulengos, esculturas, cirandas, plantios de mudas, culinária típica, ofícios e artesanias em geral, enfim, as práticas que exercitam a cultura de cada localidade podem fomentar um pertencimento diverso e poético em todos os implicados no cuidado com os infantes.

Educar não se limita a repassar informações ou mostrar apenas um caminho (aquele que o professor considera o mais correto), mas é ajudar a pessoa a tomar consciência de si mesma, dos outros e da sociedade: da cultura emergente em seu território. É aceitar-se como pessoa e saber aceitar os outros, em sua diversidade. É oferecer várias ferramentas para que a pessoa possa escolher entre muitos caminhos, aquele que lhe trouxer reflexão e construção de valores, visão de mundo, ainda que em circunstâncias adversas que seguem pela caminhada.

Educar a criança é prepará-la para a vida em sua amplitude e plenitude, considerando-a em máxima potência. Ser educador, em condições como essa, é desafiar a si mesmo a superar conceitos e preconceitos, é conceber que a criança está aí com a abertura necessária para construir as mudanças culturais que a vida humana precisa. A criança ao ser considerada como parceria íntegra e geradora de novos horizontes torna-se guardiã dos princípios éticos já existentes para construir aquilo que configura o tempo e o espaço vivido com espírito democrático e livre. A vida traz consigo a sabedoria da renovação, assim como da preservação.

A humanidade, em épocas de mundialização,  precisa se atentar ainda mais a essa dimensão e o educador pode ser quem desperte, cotidianamente, para um viver pleno e diverso, desde a infância e ao longo da vida. Para tanto faz-se urgente que esse viver seja próprio da formação dos docentes e que a educação inicial e continuada sejam repletas cuidado com o saber em suas distintas escalas:

  1. ancestralidade: uma sabedoria conectada com a produção simbólica humanitária;
  2. história: um saber sobre o conhecimento construído nas distintas épocas da humanidade;
  3. crítica: um saber refletir sobre as diferentes posturas ético-políticas do conhecimento;
  4. poética: um saber sensível associado ao discernimento dos afetos que o produz.

 

O desafio lançado começa a partir de quem o percebe e só se difunde quando tal percepção vira compromisso e se expressa na postura de educar. O princípio é aprender a educar-se com o outro e na direção do todo – do grupo, da comunidade, da cidade, do país e do mundo. Tal desafio é um sonho sagrado que se esconde nos terrenos das brincadeiras de criança… Ser educador é desafiar o tempo e manter-se ávido de saber como as crianças.

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Vanessa_cobogo2Profa. Dra. Vanessa Louise Batista

Departamento de  Fundamentos da Educação – FACED/UFC

vanessalouise10@gmail.com