A DIFÍCIL ARTE DE SER PROFESSOR DE ANATOMIA NA UNIVERSIDADE.

Profa. Delane Viana Gondim

Delane Viana Gondim

A Anatomia é uma das disciplinas básicas dos acadêmicos dos cursos da saúde que mais gera expectativas. O contato com o cadáver, aprender a localização e a forma dos órgãos internos, a expectativa da dissecação e os achados maravilhosos das variações anatômicas causam muita curiosidade.

São 760 acadêmicos que passam a cada semestre no laboratório de Anatomia do Departamento de Morfologia da UFC. Infelizmente, toda essa expectativa vira uma grande frustração. Nosso Departamento não recebe corpos há precisamente 9 anos e as peças anatômicas estão desgastadas pelo tempo e manuseio.

O que fazer diante dessa realidade?

Há 3 anos, quando ingressei no Departamento, deparei-me com essa triste realidade. Perguntas começaram a surgir, tais como: Por que a faculdade de Medicina não solicita a doação de corpos para o ensino? Em pouco tempo descobri que o processo era bem mais complexo. Havia um obstáculo a transpor: o Provimento nº 06/2008, que dispõe sobre a autorização judicial para utilização de cadáveres não reclamados para efeito de estudos e pesquisas na forma da Lei nº 8.501/92.

Tal provimento dispunha dos seguintes artigos:

Art. 2ᵒ: O pedido de autorização para utilização de cadáver para ensino e pesquisa deverá ser feito pela Escola de Medicina interessada diretamente ao Juízo Corregedor Permanente dos Cartórios de Registro Civil da comarca onde ocorreu a morte, da ausência de identificação de extinto ou ausência de endereço ou qualquer parente vivo, além de comprovante de possuir as condições necessárias para guarda do corpo em condições apropriadas e especificar a necessidade de utilização do corpo.

Art. 3º – O Juiz Corregedor permanente determinará a expedição de editais, às expensas da Escola de Medicina requerente, os quais deverão ser publicados em jornal de grande circulação, em 10 (dez) dias alternados, contendo todos os dados identificatórios disponíveis do cadáver, de maneira tão completa quanto possível, e a possibilidade de serem dirigidas reclamações de familiares ou responsáveis ao Juízo Corregedor.

Art. 4º – Comprovada a publicação e passado o prazo de 30 (trinta) dias da última, dar-se-á vista dos autos ao Ministério Público para manifestação acerca do pedido, em seguida os autos serão remetidos ao MM. Juiz Corregedor Permanente, para julgamento de reclamações porventura apresentadas e a eventual concessão de autorização para lavratura do assento de óbito, onde ficará consignado o destino específico do cadáver.

Art. 5º – Somente depois de autorização do Juiz Corregedor Permanente, o cadáver poderá ser entregue à instituição de ensino superior (Faculdade de Medicina) requerente, para fins de ensino e de pesquisa de caráter científico.

Art. 6º – A instituição de ensino requerente e seus representantes legais responderão civil e criminalmente por todos os atos.

Como visto, o referido Provimento Estadual burocratizou, por muito tempo, a cessão de corpos para o ensino, principalmente das escolas médicas públicas, porque também não havia, na Instituição, ações jurídicas específicas voltadas para essa questão.

Na tentativa de vencer essa situação, foi iniciado pelos professores e técnicos do Departamento de Morfologia um forte movimento de conscientização nos diversos setores e órgãos envolvidos. Inicialmente, buscamos o apoio da Procuradoria da UFC para a elaboração de um requerimento para a Corregedoria de Justiça do Estado do Ceará pedindo a revisão do Provimento nº 06/2008, demonstrando que suas exigências dificultavam o processo de liberação de corpos não reclamados para o ensino da anatomia nas escolas médicas do Estado do Ceará. Infelizmente não obtivemos sucesso.

Durante a realização do IV Simpósio Norte-Nordeste e Centro-Oeste de Anatomia, da Sociedade Brasileira de Anatomia, organizado pela UFC com o apoio da Unichristus, além das muitas discussões sobre os rumos que deveriam ser seguidos para o ensino da Anatomia na graduação e pós-graduação, incluindo as novas técnicas alternativas como o bodypainting, bem como a construção artesanal das peças, concluiu-se que nada substitui o estudo no cadáver.

Após o referido evento, professores de anatomia das escolas, públicas e particulares, de Medicina de Fortaleza, apoiados por seus assessores jurídicos, organizaram um calendário para encontros periódicos com o intuito de buscar um meio de solucionar o problema: a falta de corpos para estudo e pesquisa. O grupo elaborou um documento que, além de explicitar a criticidade da situação, propunha um conjunto de ações para a distribuição de corpos não reclamados, que foi encaminhado para o Exmo. Sr. Governador do Estado.

Posteriormente, após reunião com a Assessoria do Governo, saímos com esperança renovada diante da promessa de que o projeto seria encaminhado para a apreciação da Assembleia Legislativa. De fato, pouco tempo depois, estivemos reunidos com o Sr. Presidente do Legislativo, que, consternado com a situação, comprometeu-se em buscar soluções.

Paralelamente ao processo que corria na Assembleia Legislativa, o grupo continuou atuando junto aos órgãos envolvidos, como, por exemplo, a Perícia Forense do Estado do Ceará e outros, com o objetivo de conscientizar as autoridades sobre a necessidade das escolas de medicina ter corpos para a formação de profissionais de saúde mais qualificados.

Finalmente, em Março de 2016, fomos informados da queda do Provimento nº 06/2008 e comemoramos a criação do Conselho Estadual de Distribuição de Corpos para o Ensino.

Uma grande vitória, sem dúvida, para o ensino nas escolas de medicina do estado. Entretanto, esse foi apenas um primeiro passo, pois há outras demandas que também necessitam de especial atenção, como a questão da reposição de peças para os ossários. Neste caso, devem ser envolvidas as entidades municipais que são responsáveis pelos cemitérios públicos.

O magistério é, sem dúvida, uma atividade na qual o profissional se doa de corpo e alma, indo muito além de suas obrigações em sala de aula. No caso da área da saúde, isso se torna ainda mais evidente, pois todo o esforço visa a formação de profissionais qualificados que irão, um dia, atender, com dignidade e competência, a população do nosso Estado.