MEU EU INTERIOR

(publicado originalmente em “O POVO”, Fortaleza, 18 de abril de 2016)

Quem como eu chegava em Fortaleza nos anos 1980, era recebido na Cidade com a mais filosófica das perguntas: “Qual é o seu interior?”. Aos poucos fui encontrando outras pessoas que haviam ou continuavam a responder diariamente à mesma pergunta, entendendo com elas que esta cidade é uma federação de municípios. Em vários de seus bairros ainda encontramos o ar e os personagens das cidades do interior do Ceará. Embora mais raras hoje, cadeiras nas calçadas e alguns costumes sertanejos denunciam algo que trouxemos na bagagem quando chegamos aqui.

Este ecletismo cultural faz de Fortaleza uma capital singular, provendo-a de elegância, sotaque e humor próprios, transformando em pretendentes à sua cidadania todos que não nasceram aqui. O meu interior é frecheirinhense, o do meu vizinho é caririense, o de outra vizinha é serrano… A cada passo em suas ruas vamos descortinando pessoas com interiores cheios de Tauá, Jaguaribe, Amontada, Sobral ou de cada um dos 183 interiores que podem se multiplicar em mais de mil, se contarmos os distritos e vilas cearenses com mais de quinhentos habitantes. Todos compartilhamos desejos interiores de vivermos aqui nossos sonhos, oferecendo a quase três milhões de vizinhos o melhor que temos dentro de nós.

Romântico, não é? Mas a mesma cidade que pergunta e acolhe nosso interior é capaz também de ignorá-lo e segregá-lo em casas e assentamentos urbanos onde falta tudo, até mesmo a identidade. Muitos adolescentes em Fortaleza ignoram suas raízes interioranas e chegam a negar seu pertencimento ao bairro ou comunidade em que moram com medo de serem discriminados ou ouvir um “arre…” que demonstra o espanto de um interlocutor ao saber onde vivem os meninos. A cidade foi ocupada em ondas de expansão do Centro para o Sertão.

Círculos concêntricos traçados a partir da Praça do Ferreira podem ser usados para demarcar cada uma das décadas de ocupação da Cidade desde a grande seca de 1877, quando talvez tenham sido criadas as primeiras zonas de exclusão periféricas, onde concentram-se grandes grupos humanos de baixa renda e baixa escolaridade, integrados à Cidade mais pelo trabalho do que pela cidadania.

Hoje o grande círculo que rodeia a Cidade é representado pela avenida Perimetral, com uma área de expansão que vai daquela avenida ao Anel Viário. De certa forma, a Perimetral abraça Fortaleza. Alguém também poderá dizer que a cinde. No interior do círculo entre Perimetral e Centro, há infraestrutura urbana e identidade; entre a Perimetral e o Anel Viário há aglomerados urbanos que buscam ainda o título de cidadania. É nesta área que mora grande parte das crianças e adolescentes que precisam ser incorporados à vida da Cidade.

Como os que chegaram nos anos 1980 e aqueles que aqui aportaram em cada uma das décadas passadas, estes meninos e meninas não têm dinheiro no bolso, nem parentes importantes e vêm do interior do estado ou dos quase 900 assentamentos urbanos de Fortaleza onde estão os excluídos de hoje. Duzentos e noventa anos depois a pergunta ainda é a mesma. Como sempre, a resposta se atualiza, como se atualiza a desigualdade. Na Fortaleza de hoje, qual é o seu interior?

 

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Prof. Rui Rodrigues Aguiar

Docente da FACED/UFC

Chefe do Escritório do UNICEF para o Ceará, Piauí e Rio Grande do Norte 

rui.aguiar@ufc.br