Da apropriação cultural para a interculturalidade

Apropriação cultural é um conceito utilizado, pelo menos desde a década de 1960, principalmente, nos Estudos Culturais Britânicos, originados no Centro de Estudos de Culturas Contemporâneas da Universidade de Birmingham, através de autores como o britânico Raymond Williams e o jamaicano Stuart Hall. O conceito também é largamente operacionalizado nas investigações de História por pesquisadores como o inglês Peter Burke e o francês Michel de Certeau. Apropriação, como o último define é o ato de tomar os artefatos, costumes e comportamentos de outro grupo cultural como seu. É uma inevitável circulação que demonstra não haver pureza cultural. Todas as culturas possuem, mesmo com significados e usos diferenciados, elementos de outras. Assim as culturas se constituem híbridas, como afirma o antropólogo argentino Nestor Garcia Canclini, ou mestiças, como denomina o filósofo colombiano Jesús Martín-Barbero. Stuart Hall, por exemplo, defende que a intensificação do hibridismo antecede ao processo de globalização do final do século XX. Para ele, a colonização europeia acentuou o inevitável encontro e mistura das culturas.

Estas apropriações de elementos culturais originados em outros grupos podem ser observadas, por exemplo, muito antes da era cristã, quando a Bíblia judaica “acidentalmente” chegou aos etíopes ganhando uma interpretação livre e dando origem a religiosidade Rastafári. Por mais que tenha raízes em outros contextos, a apropriação de artefatos de uma cultura sempre ganha usos e/ou significados diferentes dos originais. Então, os bailes de corte europeus, apropriados no Brasil colonial nas festividades dos santos juninos, deixaram de significar o encontro da nobreza para representar o mundo rural, campesino e matuto. O carnaval, inicialmente, uma festa medieval religiosa, ganhou, abaixo dos trópicos, vários outros significados, todos bem distantes do original.

Além do estudo do hibridismo cultural, as pesquisas sobre a apropriação cultural seguem em duas frentes. A primeira demonstra como as culturas exploradas se apropriam de artefatos e comportamentos de culturas dominantes subvertendo os significados. E a segunda mostra como tradições das culturas populares são apropriadas pelas indústrias culturais para se tornar mercadorias, muitas vezes, dissociadas da origem e outras aproveitando-se desta para promover o que Hall chama de multiculturalismo comercial. São os trânsitos culturais que demonstram como as sociedades contemporâneas estão profundamente marcadas por intensas e inevitáveis relações entre diferentes culturas.

Nos movimentos políticos, a apropriação cultural passou a ser observada, ou talvez vigiada, por grupos identitários que lutam pela preservação de seus traços e pelo reconhecimento social. Muitos destes trânsitos de elementos originados ou utilizados por sua cultura para o uso comercial e descontextualizados são denunciados como uma usurpação inaceitável. Neste mês de fevereiro, viralizou na Internet e nos meios massivos o caso da jovem estudante Tuhane Cordeiro que, com a perda de cabelos, devido a um tratamento contra o câncer, comprou e passou usar um turbante na cabeça. Ela foi acusada nas ruas e nas redes sociais de uma apropriação cultural indevida. Alguns comentários chegaram a dizer que ela era uma branca e rica usando uma indumentária de negros e pobres, excluídos pelo grupo dela. A apropriação cultural passou então a ser considerada, pelos opositores a esta crítica, como um termo esquerdopata para estimular a divisão de classes e o ódio.

 

Bem longe das raízes e das discussões acadêmicas, o debate passou a girar, muitas vezes, em torno do desarrazoado radicalismo político com desdobramentos racistas. A situação lembra que mais do que a discussão sobre apropriação cultural, a preocupação acadêmica e política fundamental, neste campo, deve ser sobre as relações entre os diferentes e, por vezes, opostos grupos. A interculturalidade é o desafio que precisa unir esforços não só de pesquisadores da Antropologia, História, Comunicação, Ciências Políticas, Sociologia… mas, acima de tudo, de todos e todas que necessitam compreender, como defende a politicóloga inglesa Chantal Mouffe, as diferenças como estruturantes da vida social, por isso os conflitos são inevitáveis. Para coabitar nesta realidade, é necessário entender que o diferente não é um inimigo, mas, no máximo, será adversário com quem se deve construir acordos e articulações que possam promover o convívio e até a solidariedade.

Referências:

BURKE, Peter. Hibridismo cultural. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2006.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.

CANCLINI, Nestor. Culturas híbridas. São Paulo: EDUSP, 1997.

HALL, Stuart. Da diáspora. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997.

MOUFFE, Chantal. O regresso do político. Lisboa: Ed. Gravita, 1996.

WILLIAMS, Raymond. Cultura. São Paulo: Paze Terra, 2011.

 

Prof Ismar

Prof. Ismar Capistrano Costa Filho

Docente efetivo do curso de Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará

Doutor em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Mestrado em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Atua nas áreas de Comunicação Comunitária, Cidadania, Usos Sociais dos Meios, Rádio e Internet.

<ismarcapistranofilho@gmail.com>