“Escuta sensível: contribuições da literatura de Anton Tchekhov para a formação médica”

RESUMO

Em todo o mundo, as escolas médicas vêm desenvolvendo iniciativas para aliar a formação técnico-científica com a formação ético-humanista das novas gerações de profissionais. Das várias iniciativas propostas, a utilização das Humanidades tem sido considerada um modo de alcançar os objetivos humanísticos na formação dos médicos. Nesse particular, a literatura tem sido utilizada para alcançar objetivos de aprendizagem no campo ético-humanístico, em face de sua específica maneira de tratar da condição humana, como também de apresentar o tema da alteridade. Nesse ensaio articulam-se duas dimensões da sensibilidade médica que são discutidas em módulos da graduação na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará. Na primeira apresenta-se o tema da sensibilidade humana tomando como referência o conto ANGÚSTIA do escritor russo Anton Tchekhov; com a segunda dimensão, ressalta-se a complexa questão da escolha profissional a partir do drama vivido pelo personagem Tomaz no livro A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER, do escritor tcheco Milan Kundera. Assim, busca-se enfrentar o problema do ensino das habilidades humanísticas na medicina por intermédio da função humanizadora da literatura.

Palavras-chave: Formação médica. Sensibilidade humana. Literatura.

INTRODUÇÃO

Existem evidências de que as escolas médicas não estão conseguindo, de forma satisfatória, aliar formação técnico-científica à formação ético-humanista das novas gerações de profissionais (REGO, 2003). O crescente acúmulo de saberes sobre as doenças encontra-se dissociado de saberes sobre a relação com a pessoa doente. Essa relação significa buscar uma compreensão do significado da experiência do adoecimento, da perspectiva e das circunstâncias da pessoa que sofre (STEWART ET AL, 2010).

Os médicos estão capacitados fundamentalmente para desvendar o que está errado no corpo das pessoas levando em consideração o acervo de conhecimentos oriundos da fisiopatologia e o padrão catalogado de doenças; a familiaridade com a experiência de estar doente das pessoas costuma ser limitada, principalmente quando vem associada à experiência de sofrimento, que não significa aflição com o corpo e sim, aflição da pessoa doente (CASSEL, 1999).

Aliados a essa dimensão, as escolas médicas, lugar por excelência de transmissão de conhecimentos anátomo-clínicos das doenças, apresentam dificuldades de ofertar estratégias de ensino que transmitam os valores da profissão, que proporcionem o surgimento da identidade profissional. Mais recentemente, em estudo etnográfico, RIOS & SCHRAIBER (2012) encontraram que o padrão das relações entre as pessoas no ambiente de ensino dificulta a experiência intersubjetiva, resultando em uma educação médica que ressalta a tecnologia e se abstém do seu potencial interativo.

Por outro lado, no intuito de enfrentar alguns dos aspectos da formação médica citados até aqui, assiste-se a um movimento de reformas do ensino médico que se utiliza do campo de conhecimento das chamadas ciências humanas e o das artes, dada a seu modo peculiar de investigação da condição humana em sua inteireza (TAPAJÓS, 2002; BLASCO et al, 2005; MOORE, 1977). Esse aspecto peculiar tem sido considerado um modo de alcançar os objetivos educacionais e os conteúdos humanísticos para a formação dos médicos. Isso significa reconhecer que tais saberes são os adequados para ajustar-se com o conhecimento e a técnica de lidar com questões da existência humana.

Esse movimento denominado “humanidades médicas” tem o intento de superar a ideia de que a prática médica é a mera aplicação de um saber sobre a doença, que o domínio de saberes para acessar a natureza anátomo-clínica da doença é suficiente e pode dispensar saberes sobre o complexo relacionamento com a experiência humana do adoecimento e do sofrimento. O termo Medical Humanities é normalmente atribuído a Moore, um cirurgião australiano que em 1976 utilizou a literatura no ensino médico com o objetivo aumentar nos alunos a sua capacidade de compreensão da vivência humana (1) e de enfrentamento de problemas éticos (2).

Na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará, algumas iniciativas na graduação e na extensão vêm sendo organizadas – módulo curricular “Habilidades de Comunicação na Consulta com Pacientes e Famílias“ (32 horas no oitavo semestre) e opcional “Humanidades Médicas“ (20 horas), onde é experimentado o potencial humanizador da literatura. Como exemplo, o conto ANGÚSTIA do escritor russo Anton Tchekhov é utilizado como um dos recursos didáticos por ser considerado útil para abordar o problema da insensibilidade diante do sofrimento humano. O conto é apresentado em sala de aula no sentido de alcançar objetivos de aprendizagem ligados ao campo relacional e afetivo.

SENSIBILIDADE MÉDICA E LITERATURA

Considerado por Tolstói, como um dos melhores contos de Tchekhov, “Angústia” (MALCOM, 2005) é centrado na figura do cocheiro Iona Potapov que tenta, inutilmente, dividir com todos que encontra a dor e o relato da perda do seu filho Kuzmá Iônitch.

Do início ao fim do conto, Tchekhov narra a busca de Iona, na “neve graúda e úmida” de sua cidade, por passageiros que possam lhe trazer algum dinheiro e disponibilidade para ouvir seus lamentos.

Iona e a sua eguazinha não se movem do lugar já faz muito tempo. Saíram do pátio ainda antes do almoço, porém não fizeram nem uma corrida. Mas eis que a sombra da noite desce sobre a cidade. A luz pálida dos lampiões cede lugar à cor viva e o bulício das ruas torna-se mais ruidoso.

— Cocheiro, para a Viborgskaia! — ouve Iona. — Cocheiro!

Iona estremece e, através dos cílios grudados pela neve, vê um militar de capote e capuz.
— Para Viborgskaia! — repete o militar. — Mas tu estás dormindo, heim? Para Viborgskaia!

É procedente dizer que o cocheiro e sua eguinha, só encontram incompreensões e pessoas que desdenham de sua dor e seu sofrimento.

Coisa esquisita, a morte errou de porta… Em vez de vir me buscar, foi ao filho…
E Iona volta-se para contar como morreu seu filho, mas aí o corcunda suspira aliviado e declara que, graças a Deus, eles já chegaram, finalmente. Tendo recebido os vinte copeques, Iona fica longamente a olhar no encalço dos farristas, que desaparecem num portão escuro. Outra vez ele está só, e outra vez o silêncio cai sobre ele… A angústia, que amainara um pouco, surge de novo e oprime o peito com força maior ainda. Os olhos de Iona correm aflitos e martirizados pelas turbas que se agitam de ambos os lados da rua: não haverá no meio dessas milhares de pessoas ao menos uma que quisesse ouvi-lo? Mas as turbas correm sem notá-lo, nem a ele, nem à sua angústia… Angústia enorme, que não conhece limites. Se estourasse o peito de Iona e a angústia se derramasse, ela inundaria, parece, o mundo inteiro — e no entanto, ela é invisível. Ela conseguiu aninhar-se numa casca tão ínfima, que não se pode enxergá-la nem com lanterna à luz do sol…

A escuta tem sido considerada uma habilidade essencial para prática médica de qualidade e costuma ser caracterizada por certos aspectos comportamentais denominados habilidades seletivas e não-seletivas de escuta. Entendida como linguagem não-verbal, abrange habilidades como: contato visual, postura corporal, gestos, expressão facial, altura, tonalidade e ritmo da voz, silêncio (der MOLEN & LANG, 2007).

CAPRARA (2007) em seu texto “ESCUTA COMO CUIDADO: É POSSÍVEL ENSINAR?” retoma elementos que caracterizavam a capacidade de escuta na Antiguidade para alcançar reflexões sobre a escuta como princípio educador na formação dos profissionais de saúde.

Há cerca de quatro anos, organizamos com o professor João Macedo Coelho Filho, o livro “VOCÊ PODE ME OUVIR, DOUTOR? Cartas para quem escolheu ser médico”. O livro “foi um convite delicado para médicos e demais profissionais de saúde, escrito por outros profissionais que viveram a experiência de que a cura começa na capacidade de ouvir e na disponibilidade interior de ser o intérprete das necessidades de quem está numa cadeira à sua frente”. Profissionais de diversos campos do conhecimento ofereceram a jovens médicos uma ampla reflexão acerca da natureza da profissão, seus aspectos paradoxais na atualidade, a singularidade do encontro médico-paciente dentre outros tópicos.

Destacamos aqui, partes do prefácio do professor Adib Jatene:

Apesar dos avanços científicos e tecnológicos, o homem não mudou. Continua como antes diante da doença, necessitando antes de tudo confiar em quem o trata. Essa confiança que o faz entregar-se sem reservas só pode ser confrontada com competência e dedicação. O médico não pode permitir que a máquina o substitua. (…) Que a tecnologia não substitua o raciocínio clínico, que a eficiência não se contraponha ao afeto, que a máquina não substitua o homem e que, principalmente, o amor não morra em seu coração. (…) O médico existe para ajudar pessoas que sofrem a se sentirem melhor.

DESEPERANÇA NA CONDIÇÃO HUMANA

No conto, Tchekhov tenta encontrar alguma explicação para o desassossego pelo qual o cocheiro atravessa em sua invisibilidade e nos leva ao paroxismo da dúvida de nossa condição humana. Numa cena capaz de inquietar aqueles que mantêm ainda algum laivo de otimismo sobre a condição humana, Iona avista um zelador e propõe algum diálogo.

Iona vê um zelador de prédio com um saco na mão e decide falar com ele.
— Mano, que horas serão? — pergunta ele.

— Passa das nove… E por que ficas parado aqui? Vai andando!

Iona afasta-se alguns passos, dobra o corpo e entrega-se à angústia… Dirigir-se aos homens, ele já considera inútil. Mas não passam nem cinco minutos e ele se endireita, sacode a cabeça como se sentisse uma dor aguda e puxa as rédeas… Ele não agüenta mais.
“Para casa — pensa ele. — Para casa!”
Como um mantra, a frase “Dirigir-se aos homens, ele já considera inútil” martela os cérebros e as mentes dos alunos por um período de silêncio, por tempos a fio após a leitura em grupo. Jovens estudantes travam singular experiência com a estética da condição humana desnudada em uma de suas faces de máxima crueldade.

Por fim, após algumas tentativas infrutíferas de estabelecer algum diálogo com qualquer dos passageiros, Iona está física e emocionalmente exausto. Sua angústia é mais que imensurável, oceânica. Aqui damos conta da história de um cocheiro idoso que tenta falar com todos que encontra sobre a morte de seu filho e que não recebe atenção de ninguém. No final, a surpresa: o personagem, cujo relato é desprezado por todos, encontra, na figura do seu cavalo, um confidente amistoso.

Iona se veste e vai para a cavalariça, onde está a sua égua. Ele pensa na aveia, na palha, no tempo… No filho, quando está sozinho, ele não consegue pensar. Falar com alguém a respeito do filho, isso ele poderia, mas pensar so­zinho e imaginá-lo é-lhe insuportável e assustador…

— Mastigas? — pergunta Iona ao seu cavalo, vendo-lhe os olhos brilhantes. – Mastiga, anda, mastiga… Se não ganhamos para a aveia, comeremos palha… Pois é… Já estou velho para este trabalho… O filho é que devia trabalhar, e não eu… Aquele sim é que era cocheiro de verdade… Se ao menos vivesse…

Iona cala-se um pouco, depois continua:

— Assim é, mana egüinha… Não temos mais Kuzmá Ionitch… Foi-se desta para melhor… Pegou e morreu, à toa… Agora, imagina tu, por exemplo: tu tens um po­trinho, e tu és a mãe desse potrinho… E de repente, ima­gina, esse mesmo potrinho se despacha desta para melhor… Dá pena ou não dá?

A eguazinha mastiga, escuta e esquenta com seu bafo as mãos do dono…

Iona se deixa arrebatar e conta-lhe tudo…

Referências bibliográficas 

1. Rego, S. A formação Ética dos Médicos: saindo da adolescência com a vida (dos outros) nas mãos.Editora FioCruz. 1ª edição: 2003. 184p.

2. Stewart, M et al. Medicina Centrada na Pessoa: Transformando o método clínico. 2ª edição. Editora Artmed, 2010. 376p.

3. Cassel EJ. Diagnosing Suffering: A Perspective. Ann Intern Med. 1999;131:531-534.

4. Rios IC, Schraiber LB. Humanização e Humanidades em Medicina. São Paulo: Editora Unesp; 2012.

5. Tapajós, R. A introdução das artes no currículo médico.  Interface _ Comunic, Saúde, Educ, v.6, n.10, p.27-36, 2002.

6. Blasco PG et al. Cinema para o Estudante de Medicina: Um Recurso Afetivo/Efetivo na Educação Humanística. REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MÉDICA. Rio de Janeiro, v .29, nº 2, maio/ago. 2005.

7. Moore A (1976). Medical Humanities – a new medical adventure. New England Journal of Medicine. 295: 1479-80.

8. Moore A (1977). Medical Humanities – an aid to ethical discussions. Journal of Medical Ethics. 3: 26-32.

9. Tchekhov, A. Angústia. In: Lendo Tchekhov: uma viagem à vida do escritor/ensaio de Janet Malcom; tradução de Tatiana Belinky. Rio de Janeiro: Ediouro, 2015.

10. van der Molen. In: LEITE, A.J.M.; CAPRARA, A.; COELHO FILHO, J.M. (Orgs.). Habilidades de comunicação com pacientes e famílias. São Paulo: Sarvier, 2007.

11. CAPRARA, A. Escuta como cuidado: é possível ensinar? In: PINHEIRO & MATTO.  Razões públicas para a integralidade em saúde: o cuidado como valor. CEPESC-IMS/UERJ/ABRASCO. 2007. p. 231-46.

12. Leite, AJM; Coelho Filho, JM. Você Pode Me Ouvir, Doutor ? – Cartas Para Quem Escolheu Ser Médico – 2ª Ed. Saberes. 2010.4

 

ALVARO MADEIRO LEITE-h150Prof. Álvaro Jorge Madeiro Leite

Professor Titular de Pediatria. Departamento de Saúde Materno-Infantil
Faculdade de Medicina. Universidade Federal do Ceará
alvaromadeiro@yahoo.com.br