mestremachado-01No conto “Idéias do canário”, Machado de Assis narra a história de um biólogo que estudava aves (ornitólogo) e que encontrou, por acaso, um canário falante que vivia dentro de uma gaiola velha, pendurada na parede de uma loja de belchior (um brechó, loja que vende objetos usados). Na verdade, o canário não falava, mas trilava; o biólogo que entendia tudo em linguagem humana.

Começaram um diálogo interessante, sem que o dono da loja (que dormia estirado numa cadeira) percebesse. Perguntou ao canário como ele tinha ido parar ali naquela loja, quem era o seu dono, se não sentia saudade do espaço azul e infinito, e o canário, com certo ar de superioridade, respondeu trilando que não tinha dono, que aquele homem que dormia na cadeira era seu servo, e que não sabia o que era “espaço azul e infinito”.

Então, o biólogo, chamado Macedo, perguntou ao canário o que ele pensa que é o “mundo”, e o canário respondeu:

O mundo? O mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira.

Fascinado, Macedo comprou o canário (sem fazer alarme de seu dom fantástico) e o levou para casa, a fim de estudá-lo. Colocou o canário numa gaiola grande, em formato de círculo, e a pendurou na varanda de sua casa, de onde o canário poderia ver o jardim e um pouco do céu.

Dia após dia, Macedo ficava cada vez mais maravilhado com o seu objeto de estudo. Dormia pouco, acordava no meio da noite, pesquisava, anotava suas observações, relia, acrescentava, emendava. Durante suas pesquisas, Macedo lembrou-se de que ficou admirado com a definição de “mundo” do canário e voltou a questioná-lo sobre o assunto. Mas, agora, a resposta foi ainda mais intrigante:

O mundo – respondeu ele – é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira.

Exaurido pela intensidade das pesquisas e pelo pouco repouso, Macedo acabou adoecendo. Deixou o canário aos cuidados de um criado que morava com ele. Certo dia, quando o criado foi limpar a gaiola, deixou a portinha aberta, e o canário fugiu. Macedo ficou arrasado quando recebeu a notícia. Procurou pelo canário em todo lugar, vasculhou as redondezas, mas… nada. Passou vários dias deprimido. (As ciências não podem mesmo conter seus objetos; de certa maneira, eles sempre escapam.)

Certo dia, passeando por aí com um amigo, Macedo ouviu uma voz chamá-lo, uma voz que vinha do alto, saída do meio dos galhos das árvores. E aqui reproduzo o finalzinho do conto:

— Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?
Era o canário; estava no galho de uma árvore. Imaginem como fiquei, e o que lhe disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse doido; mas que me importavam cuidados de amigos? Falei ao canário com ternura, pedi-lhe que viesse continuar a conversação, naquele nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular.

— Que jardim? que repuxo?

— O mundo, meu querido.

— Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima. 

Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já fora uma loja de belchior. 

— De belchior? trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas de belchior?”
Ao expandir seus horizontes, o canário ingressou em outros mundos. O mundo, que já fora uma gaiola velha dentro de uma loja empoeirada, agora era o espaço infinito e azul, com o sol por cima.

Na verdade, parece mesmo que não existe “o mundo” (conjunto total de fatos e coisas), exceto para um ente que consiga percebê-lo e compreendê-lo em sua plenitude – ou seja, para Deus. Para nós, indivíduos, existem apenas “mundos-parcias”, fragmentos de mundo, maiores ou menores, mas sempre muito pequenos. Por um lado, isso é ótimo. Para quem algum dia quis “salvar o mundo” ou “mudar o mundo”, assim fica muito mais fácil. Basta mudar o mundo de alguém para melhor e terá mudado o mundo inteiro – daquela pessoa. Este, aliás, é um dos privilégios de ser professor.

 

Prof-RaulProfessor Raul Nepomuceno  

Faculdade de Direito
Departamento de Direito Público
raulnepomuceno@gmail.com