mestremachado-01Michel de Montaigne que disse: “A palavra pertence metade a quem fala e metade a quem ouve”. Isso quer dizer que não somos totalmente responsáveis pelo que os outros entendem do que falamos, mas apenas em parte. Afinal, na linguagem sempre há espaços para o preenchimento de lacunas, interpretações, superinterpretações, distorções, mal-entendidos, de modo que nem tudo na compreensão depende daquele que se pronuncia.

No entanto, a nossa parte precisa ser feita com muito cuidado, especialmente no papel de professores. Não é raro que professores universitários usem linguagem excessivamente rebuscada, com a justificativa da formalidade, da elegância, da erudição, da tradição (isso acontece muito no ambiente jurídico do qual faço parte), sem se preocupar se isso pode acabar dificultando a comunicação com os alunos, sobretudo nos primeiros semestres da graduação, fazendo crer que aquilo que está sendo dito é bem mais complicado do que realmente é.

Há um pequeno conto de Machado de Assis chamado “Um cão de lata ao rabo”, que trata disso, da linguagem, de como sempre é possível complicar, encher de requintes, enfeitar demais o que é muito simples. O enredo apresenta um professor que lança um concurso de redações, com um tema bem singelo: todos devem escrever sobre “um cão com uma lata amarrada ao rabo”. Há três categorias no torneio, três estilos diferentes em que a composição poderia ser apresentada: estilo antitético e asmático, estilo ab ovo, estilo clássico.

E Machado faz os personagens mostrarem como um tema tão simples (um cão na rua com uma lata amarrada no rabo) pode ser apresentado com adornos e requintes tais que acabam complicando muito – e desnecessariamente –, dando ares de sofisticação a um fato tão prosaico.

TRECHO DA REDAÇÃO VENCEDORA DO ESTILO ANTITÉTICO E ASMÁTICO:

O cão atirou-se com ímpeto. Fisicamente, o cão tem pés, quatro; moralmente, tem asas, duas. Pés: ligeireza na linha reta. Asas: ligeireza na linha ascensional. Duas forças, duas funções. Espádua de anjo no dorso de uma locomotiva.

Um menino atara a lata ao rabo do cão. Que é rabo? Um prolongamento e um deslumbramento. Esse apêndice, que é carne, é também um clarão. Di-lo a filosofia? Não; di-lo a etimologia. Rabo, rabino: duas ideias e uma só raiz.

A etimologia é a chave do passado, como a filosofia é a chave do futuro.

O cão ia pela rua fora, a dar com a lata nas pedras. A pedra faiscava, a lata retinia, o cão voava. Ia como o raio, como o vento, como a ideia. Era a revolução, que transtorna, o temporal que derruba, o incêndio que devora. O cão devorava. Que devorava o cão? O espaço. O espaço é comida. O céu pôs esse transparente manjar ao alcance dos impetuosos. Quando uns jantam e outros jejuam; quando, em oposição às toalhas da casa nobre, há os andrajos da casa do pobre; quando em cima as garrafas choram “lacrima-christi”, e embaixo os olhos choram lágrimas de sangue, Deus inventou um banquete para a alma. Chamou-lhe espaço. Esse imenso azul, que está entre a criatura e o criador, é o caldeirão dos grandes famintos. Caldeirão azul: antinomia, unidade. (continua…)

TRECHO DA REDAÇÃO VENCEDORA DO ESTILO “AB OVO”:

Um cão saiu de lata ao rabo. Vejamos primeiramente o que é o cão, o barbante e a lata; e vejamos se é possível saber a origem do uso de pôr uma lata ao rabo do cão.

O cão nasceu no sexto dia. Com efeito, achamos no Gênesis, cap. I, v. 24 e 25, que, tendo criado na véspera os peixes e as aves, Deus criou naqueles dias as bestas da terra e os animais domésticos, entre os quais figura o de que ora trato.

Não se pode dizer com acerto a data do barbante e da lata. Sobre o primeiro, encontramos no Êxodo, cap. XXVII, v. 1, estas palavras de Jeová: “Farás dez cortinas de linho retorcido”, donde se pode inferir que já se torcia o linho, e, por conseguinte se usava o cordel. Da lata as induções são mais vagas. No mesmo livro do Êxodo, cap. XXVII, v. 3, fala o profeta em caldeiras; mas logo adiante recomenda que sejam de cobre. O que não é o nosso caso.

Seja como for, temos a existência do cão, provada pelo Gênesis, e a do barbante citada com verossimilhança no Êxodo. Não havendo prova cabal da lata, podemos crer, sem absurdo, que existe, visto o uso que dela fazemos. (continua…)

TRECHO DA REDAÇÃO VENCEDORA DO ESTILO LARGO E CLÁSSICO:

Larga messe de louros se oferece às inteligências altíloquas, que, no prélio agora encetado, têm de terçar armas temperadas e finais, ante o ilustre mestre e guia de nossos trabalhos; e porquanto os apoucamentos do meu espírito me não permitem justar com glória, e quiçá me condenam a pronto desbaratamento, contento-me em seguir de longe a trilha dos vencedores, dando-lhes as palmas da admiração.

Manha foi sempre puerícia atar uma lata ao apêndice posterior do cão: e essa manha, não por certo louvável, é quase certo que a tiveram os párvulos de Atenas, não obstante ser a abelha-mestra da antiguidade, cujo mel ainda hoje gosta o paladar dos sabedores.

Tinham alguns infantes, por brinco e gala, atado uma lata a um cão, dando assim folga a aborrecimentos e enfados de suas tarefas escolares. Sentindo a mortificação do barbante, que lhe prendia a lata, e assustado com o soar da lata nos seixos do caminho, o cão ia tão cego e desvairado, que a nenhuma coisa ou pessoa parecia atender. (continua…)  

Isso tudo para contar a história de um cachorrinho, coitado, vagando pela rua com uma lata amarrada no rabo?! É firula demais…

Enquanto professores, façamos ao menos a nossa parte. Cuidemos da palavra que nos pertence.

 

Prof-RaulProfessor Raul Nepomuceno  

Faculdade de Direito
Departamento de Direito Público
raulnepomuceno@gmail.com