mestremachado-01Machado tem um conto intitulado “Ex cathedra”, que conta a história de certo senhor idoso chamado Fulgêncio, que amava os livros e as ciências, passava o dia inteiro lendo, de manhã, de tarde, de noite, sob os cuidados de uma mocinha, sua afilhada, adolescente de catorze anos de idade, de nome Caetaninha. Fulgêncio lia sobre tudo: filosofia, geografia, história, direito, biologia, matemáticas… Aliás, foi ele quem cuidou, pessoalmente, da educação da afilhada.

A mente de Fulgêncio estava sempre mergulhada em teorias e doutrinas, as mais abstratas, e para tudo ele buscava uma explicação teórica e estritamente racional. Sua condição era tão extrema que muitas vezes ultrapassava a linha tênue da insanidade. Um dia acordou com a ideia de melhorar a situação dos turcos e redigiu para eles uma constituição, que enviou a um ministro inglês que morava em Petrópolis. Em outra ocasião, decidiu estudar cuidadosamente a anatomia dos olhos, para verificar se eles realmente podiam ver, e concluiu que sim.

Então, certo dia, Fulgêncio recebeu a notícia de que um irmão seu, que morava no Norte, estava muito doente, prestes a falecer, e este irmão lhe pedia em carta para cuidar de um filho que ele deixava, um jovem de quinze anos, chamado Raimundo. Dias depois, Raimundo chegou ao Rio de Janeiro, à casa de Fulgêncio e Caetaninha, para morar com eles. A convivência entre os dois adolescentes logo se revelou harmoniosa, o que fez surgir em Fulgêncio a ideia de fazê-los se amarem. Isso mesmo: fazê-los se amarem. Isso porque, para Fulgêncio, o amor, tanto quanto qualquer outro tema da experiência humana, poderia ser objeto de uma teoria, de uma doutrina, que, construída e assimilada corretamente, não tinha como não conduzir ao resultado esperado. Para ele, o amor pode ser aprendido como quem aprende a ler e escrever.

Assim, o professor elaborou um planejamento, meticulosamente fundado em sua teoria sobre o amor, um planejamento que levaria meses para ser executado, porque os dois adolescentes precisavam primeiro estudar a origem do universo, conhecer a demonstração da existência do homem, entender a organização das sociedades, passando ainda por outros assuntos diversos, até que chegasse o tempo oportuno para o estudo do amor propriamente dito. E assim começaram as aulas, com alguns dias de intervalo entre uma e outra, para que os assuntos pudessem ser bem abordados e bem digeridos pelos alunos.

Acontece que as coisas não saíram bem como planejadas. Enquanto Fulgêncio falava em suas longas palestras, Raimundo e Caetaninha ficavam se entreolhando, e as mentes dos dois jovens divagavam em fantasias adolescentes, que o narrador da história expõe em uma narrativa lindamente poética. Aqui vai um trecho:

“Enquanto o velho falava, reto, lógico, vagaroso, curtido de fórmulas, com os olhos fixos em parte nenhuma, os dois alunos faziam trinta mil esforços para escutá-lo, mas vinham trinta mil incidentes distraí-los. Foi a princípio um casal de borboletas que brincavam no ar. Façam-me o favor de dizer o que é que pode haver extraordinário num casal de borboletas? Concordo que eram amarelas, mas esta circunstância não basta a explicar a distração. O fato de voarem uma atrás da outra, ora à direita, ora à esquerda, ora abaixo, ora acima, também não dá a razão do desvio, visto que nunca as borboletas voaram em linha reta, como simples militares.

— O entendimento, dizia o velho, o entendimento, segundo eu já expliquei…

Raimundo olhou para Caetaninha, e achou-a olhando para ele. Um e outro pareciam confusos e acanhados. Ela foi a primeira que baixou os olhos ao regaço. Depois, levantou-os, a fim de os levar a outra parte, mais remota, o muro da chácara; na passagem, como os de Raimundo ali estivessem, ela encarou-os o mais rapidamente que pôde. Felizmente, o muro apresentava um espetáculo que a encheu de admiração: um casal de andorinhas (era o dia dos casais) saltitava nele, com a graça peculiar às pessoas aladas. Saltitavam piando, dizendo coisas uma à outra, o que quer que fosse, talvez isto — que era bem bom não haver filosofia nos muros das chácaras.”

Após três ou quatro aulas já estavam apaixonados, sem que Fulgêncio sequer suspeitasse.

Naquela mesma semana, após aula ministrada à tarde, Fulgêncio foi trancar-se no escritório para ler. Antes de começar a leitura, dizia consigo mesmo: “na semana que vem entro na organização das sociedades; todo o mês que vem e o outro é para a definição e classificação das paixões; em maio passaremos ao amor… já será tempo…”

Enquanto pensava isso, Caetaninha e Raimundo trocavam beijos furtivos na varanda.

Realmente, parece que há coisas sobre as quais a filosofia e as ciências têm pouco – ou nenhum – domínio. O objeto sempre escapa. E um professor precisa saber disso.

 

Prof-RaulProfessor Raul Nepomuceno

Faculdade de Direito
Departamento de Direito Público
raulnepomuceno@gmail.com