mestremachado-01Uma das marcas registradas de Machado de Assis é a luta interior de seus personagens diante de dilemas, muitas vezes personagens ambíguos, demasiadamente humanos.

Frequentemente, um personagem pensa em fazer algo que ele mesmo julga errado, moralmente reprovável, mas, em seguida, passa a buscar, internamente, justificativas para o seu erro. E sempre encontra.

Logo no começo de “Esaú e Jacó”, duas distintas senhoras da elite carioca vão caminhando pela rua – uma delas vai feliz da vida, por razão que o livro explica no começo – quando passam por um sujeito pedindo dinheiro para a “missa das almas”. Não era um mendigo, apenas um pobre coitado que ajudava nos trabalhos da Igreja, e ficava ali pedindo dinheiro para a realização de missas pelas almas que estavam no purgatório. Aquela senhora que vinha exultante tirou da bolsa uma nota de 2 mil réis novinha e colocou na bacia ao chão – bacia que até então cotinha apenas algumas moedas de pequeno valor. E foi embora. Hoje, seria mais ou menos como dar uma nota novinha de 100 reais.

O sujeito que pedia o dinheiro para a missa das almas tomou um susto. Logo desconfiou que fosse uma nota falsa, mas foi um pensamento rápido. Depois ficou procurando uma justificativa para aquela generosidade toda, e pensou o mal das duas senhoras, que talvez viessem de alguma aventura amorosa (o que não era verdade, diga-se).

Mas o interessante é que o rapaz decide “encerrar o expediente” daquele dia e voltar à Igreja para entregar o apurado. E começa uma luta moral intensa, porque, durante a caminhada, ele é assolado pela tentação de ficar com a nota de 2 mil réis para si. O trecho é um pouco longo, mas vale a leitura:

«Cumprimentou as senhoras, quando o carro passou. Depois ficou a olhar para a nota tão fresca, tão valiosa, nota que as almas nunca viram sair das mãos dele. Foi subindo a Rua de São José. Já não tinha ânimo de pedir; a nota fazia-se ouro, e a ideia de ser falsa voltou-lhe ao cérebro, e agora mais freqüente, até que se lhe pegou por alguns instantes. Se fosse falsa… “Para a missa das almas!” gemeu à porta de uma quitanda e deram-lhe um vintém, — um vintém sujo e triste, ao pé da nota tão novinha que parecia sair do prelo. Seguia-se um corredor de sobrado. Entrou, subiu, pediu, deram-lhe dois vinténs, — o dobro da outra moeda no valor e no azinhavre.

E a nota sempre limpa, uns dois mil-réis que pareciam vinte. Não, não era falsa. No corredor pegou dela, mirou-a bem; era verdadeira. De repente, ouviu abrir a cancela em cima, e uns passos rápidos. Ele, mais rápido, amarrotou a nota e meteu-a na algibeira das calças; ficaram só os vinténs azinhavrados e tristes, o óbolo da viúva. Saiu, foi à primeira oficina, à primeira loja, ao primeiro corredor, pedindo longa e lastimosamente:

— Para a missa das almas!

Na igreja, ao tirar a opa, depois de entregar a bacia ao sacristão, ouviu uma voz débil como de almas remotas que lhe perguntavam se os dois mil-réis… Os dois mil-réis, dizia outra voz menos débil, eram naturalmente dele, que, em primeiro lugar, também tinha alma, e, em segundo lugar, não recebera nunca tão grande esmola. Quem quer dar tanto vai à igreja ou compra uma vela, não põe assim uma nota na bacia das esmolas pequenas.

Se minto, não é de intenção. Em verdade, as palavras não saíram assim articuladas e claras, nem as débeis, nem as menos débeis; todas faziam uma zoeira aos ouvidos da consciência. Traduzi-as em língua falada, a fim de ser entendido das pessoas que me leem; não sei como se poderia transcrever para o papel um rumor surdo e outro menos surdo, um atrás de outro e todos confusos para o fim, até que o segundo ficou só: “não tirou a nota a ninguém… a dona é que a pôs na bacia por sua mão… também ele era alma”…»

E a história não acaba aqui. Saindo da sacristia, deu com um mendigo, sujo e de roupas rasgadas. O rapaz das almas meteu a mão no bolso e tirou duas moedinhas, dois vinténs, e colocou no chapéu do mendigo. E o narrador diz que ele fez isso “rápido, às escondidas, como quer o Evangelho”.

Machado às vezes é mestre em lembrar e fazer enxergar aquilo que de pior os humanos somos capazes.

 

Prof-RaulProfessor Raul Nepomuceno

Faculdade de Direito
Departamento de Direito Público
raulnepomuceno@gmail.com