Uma política educacional equivocada

Atualmente, mais e mais editais de concurso para Professor/a de Universidade pública, para as áreas de Humanas e Ciências Sociais Aplicadas, têm exigido um perfil acadêmico linear dos/as aspirantes à vaga. Ao que tudo indica, tal fato estaria ligado a uma incisiva política educacional da CAPES que supervaloriza aquilo que chama de “aderência acadêmica”. Essa aderência teria, por exemplo, um papel significativo na atribuição de nota ao programa de pós-graduação de determinada instituição. Assim, quanto mais docentes de uma mesma área de conhecimento atuando em um determinado programa de pós-graduação, melhor seria a nota deste programa (obviamente que diversos outros fatores são também levados em consideração para a avaliação de um dado programa).

Desse modo, tem sido cada vez mais comum que, em um concurso, p. ex., para o curso de Letras, seja exigido do/a candidato/a: bacharelado, mestrado e doutorado em Letras, ficando consequentemente excluído do certame aquele/a candidato/a que perseguiu uma formação acadêmica eclética (ex: bacharelado em Letras, Mestrado em Comunicação e Doutorado em Filosofia). Idem para o caso do Direito: hoje, um concurso para o Direito – digamos que um concurso para a disciplina “Filosofia do Direito” – costuma exigir do/a candidato/a: bacharelado, mestrado e doutorado em Direito. Dessa forma, tendo em vista que muitos/as pesquisadores/as almejam uma carreira em uma Universidade pública e que, para tanto, precisam se adequar às exigências dos editais, predominam, cada vez mais, entre nós trajetórias acadêmicas de tipo linear: Letras-Letras-Letras; Direito-Direito-Direito; História-História-História; e por aí vai.

Tudo isso parece muito natural? Nem tanto…

Pensamos que essa política educacional da aderência, termina se configurando em estímulo a uma auto-referencialidade teórica, que, no limite, pode acarretar no oferecimento de abordagens teoréticas pouco ricas. Talvez, se investigássemos mais a fundo o que estaria na base dessa política educacional, nos depararíamos com uma tradição (despontada com vigor na Modernidade) que confere proeminência à especialização científica. Entretanto, é preciso lembrar que, se por um lado, a ultra-especialização representa a grande força das ciências, haja vista que, com objetos bem recortados, a sensação de avanço, de progresso do saber é sentida mais intensamente; por outro, a especialização é também o limite, a “fraqueza” das ciências, já que nesse processo agudo de delimitação, mediações e relações importantes do objeto com outros objetos e também com o seu contexto terminam sendo desconsideradas ou menosprezadas.

Embora não pretendamos de modo algum aqui desvalorizar as trajetórias acadêmicas de tipo linear (Letras-Letras-Letras), pensamos, no entanto, que o oposto – não valorizar trajetórias ecléticas (dificultando, por exemplo, o acesso desses pesquisadores à carreira universitária) – é uma política educacional lastimavelmente equivocada. Acrescente-se também que, mesmo partindo de uma trajetória formalmente linear, é perfeitamente possível ao/à pesquisador/a, a depender de seus interesses e objetivos, adotar uma abordagem eclética (inter, trans ou multidisciplinar) em relação ao objeto estudado. Ou seja, um percurso acadêmico retilíneo, por si só, não impede nem retira do/a pesquisador/a a possibilidade de oferecer múltiplos olhares sobre o objeto pesquisado.   Seja como for, o queremos explicitar é que, para nós, eventuais abordagens, por exemplo, “literárias da Filosofia” ou “filosóficas da Literatura”, isto é, eventuais abordagens que retirem os objetos de seus territórios comuns, “seguros”, que projetem luz sobre suas superfícies ocultas, enfim, que os inscrevem em contextos mais amplos, jamais deveriam ser desprezadas.

Além disso, a política educacional da aderência parece produzir um outro efeito nocivo, qual seja, o de reforçar e institucionalizar uma espécie de desconfiança em relação ao “olhar do outro”. Reforça-se a ideia de que o olhar do outro (o outro olhar), o olhar do “estrangeiro” sobre o “nosso” campo do saber, é um olhar pouco técnico, pouco científico, pouco especializado, e que, por isso, deve ser desprezado. Nesse sentido, institucionaliza-se um rígido recorte disciplinar (ilusório, a bem da verdade), que procura nos manter em escaninhos fixos, estáticos. Enfim, parece que todos têm a perder com essas rigorosas segmentações, com essas taxionomias estáticas (de inspiração, quiçá, aristotélica) do saber. Se por um lado, esses recortes podem conferir uma certa sistematicidade ao objeto estudado – algo que pode ser bastante proveitoso – acaso engessados esses recortes, pensamos que disso decorre um empobrecimento teórico, tornando assim a atividade investigativa mais monótona do que poderia ser.

Na contramão dessa política educacional, vale destacar a louvável experiência de alguns bacharelados interdisciplinares do Brasil que, não sem enfrentar muitas dificuldades e desafios, vêm despontando em algumas IES, como é o caso, por exemplo, do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos da UFBA (IHAC). Vale a pena conferir no seguinte link a proposta pedagógica do curso: http://www.ihac.ufba.br/ihac/

Nesse aspecto, as universidades européias e norte-americanas também podem ser inspiradoras. Nelas, os diversos saberes costumam se entrecruzar de modo mais fluído, sendo comum, por exemplo, encontrar em um mesmo departamento professores/as com as mais variadas formações acadêmicas em diálogo. Os currículos e projetos pedagógicos dos cursos dessas instituições também costumam ser ecléticos e flexíveis, oferecendo múltiplos olhares aos objetos investigados. Mais uma vez, vale repetir que o texto não busca criticar as trajetórias acadêmicas de tipo linear, mas sim a uma política educacional estatal que, de certo modo, isola e desestimula as formações de tipo não lineares.

Para finalizar, vem à mente um provocativo texto de Nietzsche (como se algum texto deste filósofo não fosse provocativo), denominado “Considerações Extemporâneas. III – Schopenhauer como educador”, que, escrito em 1874, nos faz refletir sobre a política educacional comentada acima. Em determinada parte do texto, o filósofo (que havia passado pela desgostosa experiência do magistério superior à frente da Universidade da Basiléia), realiza uma contundente crítica àquilo que poderíamos chamar de “enquadramento intelectual promovido pelo Estado”. Seguem adiante alguns trechos desse texto que, embora se configurando em uma crítica ao ensino da Filosofia, pode ser lido de forma ampla, sendo aplicável, portanto, a qualquer outro campo do saber (devo a leitura desse texto ao estimado Emanuel Germano):

“Vista com mais precisão, aquela ‘liberdade’ com que agora o Estado,

como  eu  dizia,  contempla  alguns  homens   em  nome da  filosofia já  não  é

nenhuma  liberdade,  mas  uma  função,  que  alimenta  seu  homem.  A promoção da  filosofia,  portanto,  consiste  apenas  em  que  hoje  em  dia  pelo menos a  certo número de homens  é  possibilitado  pelo  Estado  viver de sua

filosofia, por  poderem fazer dela um ganha-pão (…).

Acontece, com efeito, que o Esta do tem medo da filosofia em geral,

e  precisamente,  se este é  o  caso, tentará  atrair  para  si o  maior  número  de

filósofos  que lhe dêem a aparência de ter a filosofia do seu lado – porque

tem do seu  lado  esses homens ,  que levam o  nome dela  e no  entanto  estão

tão longe de infundir medo. Mas, se aparecer um homem que efetivamente

faça  menção  de  ir  com  a  faca  da  verdade  ao  corp o  de  tudo,  até  mesmo

do Estado, então  o  Estado,  porque antes  de tudo afirma  sua própria  existência,  estará  no  direito  de  excluir  de  si  um  tal  homem  e  tratá-lo  como

inimigo  seu:  assim  como  exclui  e  trata  como  inimiga  uma  religião  que  se

coloca acima dele e quer ser seu juiz.

Se alguém suporta, pois, ser filósofo

em  função  do  Estado,  tem  também  de  suportar  ser  considerado  por  ele

como  se  tivesse  renunciado  a  perseguir  a  verdade  em  todos  os  seus  escaninhos.  Pelo menos  enquanto estiver  favorecido  e  empregado,  ele  tem

de  reconhecer  ainda,  acima  da  verdade,  algo  superior,  o  Estado. E  não

meramente  o  Estado,  mas  ao  mesmo  tempo  tudo  o  que  o  Estado  exige

para  seu bem:  por exemplo, uma  forma  determina da  de religião, a  ordem

social,  a  organização  militar – em todas estas coisas  está inscrito  um noli

me  tangere [não me toques].

(…)

o  Estado escolhe para si seus servidores filosóficos, e,  aliás, tantos quantos

precisa  para  seus  estabelecimentos;  dá-se,  pois ,  a  aparência  de poder  distinguir  entre  bons  e  maus  filósofos  e,  mais  ainda,  pressupõe  que  sempre

há  de  haver  bons  em  número  suficiente  para  ocupar  com  eles  todas  as

suas  cátedras de ensino.  Não  somente  no  tocante  aos  bons ,  mas  também

ao  número necessário  dos  bons ,  é  ele  agora  a  autoridade .

(…) 

E agora pense-se em uma cabeça juvenil  [de estudante],

sem  muita experiência  da  vida,  em que cinqüenta sistemas  em  palavras

e cinqüenta críticas  desses sistemas são guardados juntos e misturados -

que aridez, que selvageria, que escárnio, quando se trata de um a educação

para  a  filosofia! Mas,  de fato, todos  reconhecem que  não  se educa para

ela,  mas  para  uma  prova  de filosofia:  cujo  resultado,  sabidamente  e  de

hábito, é que quem sai dessa prova – ai, dessa provação!  confessa a

si mesmo com um profundo suspiro: “Graças a Deus que não sou filósofo,

mas cristão  e cidadão do meu Estado!”

E se esse suspiro profundo fosse justamente o propósito do Estado,

e a “educação para a filosofia”, em vez de conduzir a ela, servisse somente

para afastar da  filosofia?”. 

 

MARCIO-PEREIRA-h150Prof. Márcio Pereira

Docente do Curso de Direito – UFC
(marciofrpereira@gmail.com)