Compartilhando uma experiência de avaliação na disciplina “Introdução à Filosofia”

MARCIO-PEREIRA-h150Márcio Pereira

Se lecionar a disciplina “Introdução à Filosofia” – em um curso de graduação em Filosofia – já se mostra uma atividade acadêmica das mais desafiadoras (em virtude, p. ex., das incontáveis abordagens possíveis de temas e filósofos), lecioná-la em um curso de Direito potencializa, sem dúvida, o desafio.

Isto porque, para além da famigerada pergunta que, inevitavelmente, termina surgindo pelo caminho (“para que Filosofia?”), não é nada fácil tentar despertar o interesse por esse campo do saber em alunos/as, em sua maioria, ávidos pelo estudo exclusivo do emaranhado de normas jurídicas estatais.

Dessa forma, é comum perceber por parte dos/as recém-ingressos/as uma intensa expectativa por cursar disciplinas como Direito Civil, Penal, Constitucional, etc., ao mesmo tempo em que se nota um olhar suspeito ou desdenhoso em relação às disciplinas denominadas “propedêuticas” (Sociologia, Filosofia, Antropologia, etc.). Enquanto as primeiras costumam ser encaradas pelos/as estudantes como sendo o “verdadeiro” Direito, as demais são frequentemente vistas como “extra-jurídicas”, “descoladas do Direito”, produzindo, constantemente, um desinteresse nos/as alunos/as.     Assim é que, de geração em geração, tem sido reproduzido um animado ditado nos corredores da Faculdade de Direito que diz, mais ou menos, o seguinte: “se o/a aluno/a se interessar pelas disciplinas dos primeiros semestres (propedêuticas), deve então procurar outro curso; se não se interessar por essas disciplinas, é porque está no curso certo!”. Esse polarizado ditado diz, de fato, muito sobre a concepção que os/as estudantes de Direito (e também alguns/mas professores/as) carregam não só da Filosofia, Sociologia, mas do próprio Direito.

Para além dessa polarização, um olhar um pouco mais atento percebe que o Direito não se trata apenas de um emaranhado de normas jurídicas estatais, porém, mais que isso, de uma manifestação social, histórica, travada a partir de determinadas estruturas e relações sociais (Mascaro). Encarando-se agora o Direito dessa maneira, passa então a Filosofia, a Sociologia e as demais a terem um papel decisivo no desvelo dos fios escondidos do fenômeno jurídico, proporcionando a inscrição deste em um quadro teórico bem mais sofisticado.

Mas retomando o tema inicial, foi então inserido nesse desafiador contexto que me vi às voltas com a condução da disciplina “Introdução à Filosofia”, bem como com as possíveis formas de avaliar os/as estudantes dessa cadeira. E é sobre este último ponto que gostaria de compartilhar uma experiência avaliativa que considero exitosa. Exitosa porque constatei que os/as estudantes se engajaram bastante no processo de elaboração do trabalho, além de perceberem o potencial que o estudo da Filosofia pode representar para a atividade jurídica.

Em resumo, o trabalho consistiu no seguinte: solicitei aos/as estudantes que, em grupos, produzissem um vídeo de até 15 minutos com o seguinte conteúdo. Valendo-se de uma das fases do método socrático, os grupos deveriam eleger um tema jurídico polêmico (ex: internação compulsória de dependentes químicos) e estudá-lo a fundo a fim de romper com eventuais pré-juízos e pré-conceitos sobre a temática. Feito isso, a equipe deveria dialogar com uma ou mais pessoas a fim de problematizar eventuais dogmatismos oriundos de seus interlocutores. Todo esse material gravado teve que ser editado e apresentado em sala pela equipe, seguido de debate com toda a turma. O modesto objetivo dessa atividade foi o de, primeiramente, quebrar possíveis perspectivismos internos das equipes por meio de leituras e reflexões aprofundadas sobre os polêmicos temas previamente escolhidos. Além disso, o trabalho também buscou inserir as equipes no dificultoso processo de diálogo com interlocutores/as que, nem sempre, se apresentam ao debate com honestidade intelectual. Por fim, pretendeu-se com o trabalho apontar para a importância da Filosofia para as atividades jurídicas (elaboração de sentenças, pareceres, etc.)

Assim, penso que se os alunos/as não chegaram a “certezas” sobre os temas que pesquisaram, viveram, ao menos, alguns bons enganos, experimentaram, por assim dizer, todas as dores e as delícias da dúvida – filosófica – libertadora.

Abaixo seguem alguns trechos das orientações que elaborei para os/as estudantes a respeito da confecção desse trabalho.

“Aplicando uma das etapas do método socrático: desconstruindo ‘verdades’, experimentando/semeando dúvidas, alçando saberes”.

Tendo em mente uma das etapas do método empregado por Sócrates (caracterizada pelo reconhecimento da própria ignorância; pela ruptura com pré-juízos e pré-conceitos; pela quebra de perspectivismo) – método esse que procuramos ilustrar por meio da análise do filme “12 homens e uma sentença” (1957) e por meio dos textos examinados em sala – pede-se à equipe que, com base em um polêmico tema sócio-jurídico por ela escolhido, produza um vídeo, nos moldes a seguir explicitados.

Primeiro, sugere-se que a equipe estude com profundidade o tema escolhido a fim de quebrar eventuais perspectivismos internos, pré-juízos e pré-concepções dos integrantes da equipe. Abordar, portanto, o tema eleito com honestidade intelectual (“cérebro poroso”, isto é: aquele que é capaz de construir e de se apropriar das melhores ideias sobre um dado assunto).

Feito isso, a equipe deverá buscar dialogar com um/a (ou alguns/mas) interlocutor/a que possua posicionamento diverso da equipe. É interessante ser bem criterioso na escolha dessas pessoas.

Durante o diálogo, seria interessante a equipe realizar uma série de sutis questionamentos/problematizações/provocações ao interlocutor/a, de maneira a tentar fazer com que o/a interlocutor/a explicite as razões que o/a levam a pensar daquela forma.  Não se trata de um exercício de convencimento do/a interlocutor/a ou de disputa (competição), mas de, sutil e habilmente (inspiração socrática), lançar problemas/provocações a este/a, buscando obter as razões que o/a levam a sustentar determinada opinião.

Não se trata também de um trabalho de mera exposição de pontos de vista diferentes sobre um assunto polêmico. A ideia é que a equipe se aprofunde no tema escolhido (rompa com o perspectivismo interno), forme o seu convencimento (“aproxime-se da verdade” – por meio de uma visão mais totalizante de um problema dado) e experimente toda a dificuldade de diálogo com o/a outro/a que, muitas vezes, estará imerso num oceano de “doxái”. Com esse exercício, pretende-se igualmente fazer com que a equipe perceba minimamente como a atividade de “retorno à caverna” por parte do filósofo (Mito da Caverna) revela-se tortuosa”.