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Sobre a Europa que não soube ser uma “metamorfose ambulante”

Essa semana irei participar de duas bancas de doutorado. Ambas as teses tratam de teoria da tradução. Pensar na teoria da tradução não significa se fechar em algo friamente literário: eis o porque do meu entusiasmo com a criação da Pós-Graduação em Estudos da Tradução na UFC. Nos nossos dias, aliás, traduzir é uma problemática, antes de mais nada, política. Se eu pensar no processo tradutório, não consigo não pensar na Europa, na Itália, o meu “não-País”, como – polemicamente, mas corretamente – o critico Cesare Garboli, o mestre dos meus vinte anos, definia o lugar no qual nasci. Se eu pensar no processo tradutório, não consigo não pensar na Alemanha, na Grécia.

Um dos livros de cunho teórico que mais me fascinaram nos últimos meses foi o Dictionary of Untranslatables (Princeton: Princeton University Press, 2014, volume organizado por Emily Apter, Jacques Lezra e Michael Wood). Trata-se da versão inglesa atualizada e ampliada do Dictionnaire des intraduisibles que Bárbara Cassin organizou (Seuil / De Robert) no ano de 2004. O texto analisa quatrocentas palavras chave das principais línguas europeias. Composto de verbetes preparados por mais de cento e cinquenta colaboradores, o Dictionnaire des intraduisibles mostra como muitos termos da linguagem filosófica não podem ser traduzidos – ou precisam ser traduzidos por meio de uma mudança de sentido – pelo fato de serem conceitualmente vinculados aos idiomas no qual foram pensados.

Perante esta limitação linguística – bem como pontua Cassin na introdução ao volume – o Dictionnaire des intraduisibles escolhe uma solução que pode ser sintetizada com o vocábulo – criado pelos filósofos Deleuze e Guattari – “desterritorialização”. Desterritorializar, com base na perspectiva de Cassin, significa – na passagem do texto de partida ao texto de chegada – produzir novos conceitos, novos sentidos repetindo a mesma palavra ou as mesmas palavras. Desterritorializar significa ativar um mecanismo programaticamente infiel de “repetição diferente” (ainda uma categoria de Deleuze) que confere às insuficiências da linguagem uma acepção positiva, perpetuamente criativa, afirmativa. Quando na Divina Commedia Dante retoma “conceptus” e coloca a palavra no idioma florentino – “concetto” – o termo propõe o valor filosófico que era próprio do discurso da escolástica, a cultura na qual Dante se formou, mas adquire também uma conotação poética de ideia, de imagem, assim como – observa Jean-François Groulier, autor do verbete Concept – de intenção “no sentido de um projeto intelectual e artístico”. Consideremos o verso 81 do canto XXIX  do Paradiso. Metamorficamente, se “conceptus” afirma uma conotação filosófica, ao mesmo tempo “concetto” produz uma conotação que é também lírica.

O século XIV foi, para Dante, o século do exilio de Florença e da metamorfose da sua escritura, ao passo que a década passada foi a década da unidade europeia. A Europa se tornou um laboratório de metamorfose social. O fato é que a metamorfose concerniu unicamente a dimensão econômica: houve o Euro, mas não foram criados os europeus. A Europa não quis ter a coragem de passar por um processo de mudança integral: entretanto enfrentou a globalização sem saber traduzir a nível global as próprias diferenças locais. O que é a Divina Comedia de Dante, se não a tentativa da tradução das Itálias da Idade Media, assim como das culturas locais e da identidades culturais, dentro de uma perspectiva universal?

Na Europa de hoje esse exílio poderia ter sido metamórfico, vivo, plural, inclusivo. A Europa porém não teve a coragem de percorrer tal caminho, de se desterritorializar. A Europa não soube potencializar o valor da reciprocidade tradutória (e, principalmente, “in-tradutória”). A Europa soube somente valorizar o poder do valor de troca. Entre os europeus os inimigos da Europa são sempre mais. Quantos contra-europeístas encontram-se na Europa “do Sul”! E quanta tristeza no exílio de muitos dos meus conterrâneos, os quais querem voltar atrás – freudianamente – para o útero materno: querendo o fechamento identitário, evocando as pequenas pátrias, os cadáveres dos Estados-Nação. A identidade é sempre reacionária. E traduzir a Europa – traduzir o “Outro” dentro e fora da Europa – significa algo de muito mais alto e sério do que um medo infantil. Significa a potencialidade criadora do novo, do metamórfico. Falar em tradução e desterritorialização significa o oposto do apagamento das diferenças por subtração ou por superação dialética. Desterritorializar significa incluir o diferente, assim como se incluir nas diferenças. Ser, em suma, uma “metamorfose ambulante”.

Prof. Yuri Brunello

e-mail: ybrunelloomatic@gmail.com