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Event: A Philosophical Journey Through A Concept

Uma leitura que sugiro é Event (Penguin, New York, 2014), do pensador esloveno Slavoj Zizek (em volume ainda inédito em português). Zizek explica que o “evento” é um fenômeno que consiste na ruptura das “coordenadas universais através das quais a realidade se apresenta a nós”. Assim, seguindo o raciocínio do autor de Event, a história da literatura italiana é marcada por alguns “eventos”, tais como a Divina Commedia de Dante, o Canzoniere de Petrarca ou mesmo I promessi sposi de Alessandro Manzoni, por exemplo. A importância do “evento”, no entanto, reside na capacidade em produzir, no nível epistemológico, um curto-circuito interno ao discurso dominante.

A epistemologia é a disciplina que lida com os procedimentos e os processos de conhecimento e por isso interessa – e muito – a literatura, cuja dimensão de pertençimento é aquela, abstrata, dos signos. Jacques Rancière num livro de alguns anos atrás, O desentendimento, falava da estética (da qual, é claro, o cânone literário constitui uma articulação) como de uma “polícia”; ou seja, a garantidora do fato “que uma actividade seja visível e uma outra não o seja, que uma determinada palavra seja entendida como discurso e uma outro como barulho”.

Em outras palavras: a literatura partecipa significativamente do paradigma através do qual uma civilização específica estabelece as condições de possibilidade da expressão artística, assim como participa significativamente do paradigma do discurso disciplinar, da polícia. Michel Foucault chamou de episteme o paradigma que preside a ordem do discurso. É a episteme que decide – sim, ela mesmo, o verdadeiro Sujeito do nosso inconsciente – quando uma poesia de Lucrécio ou de Luigi Pulci é fala e quando é apenas cacofonia.

E o “evento”? O “evento” quebra essa dinâmica, produzindo uma ruptura epistemológica. “Um evento puro”, observa Terry Eagleton no belíssimo livro que ele publicou dois anos atrás, The Event of Literature, “é cego. Sendo irredutível a qualquer estrutura explicativa, ele é inefável e enigmático como um acontecimento dadaísta”. Para Zizek, conforme mencionamos anteriormente, o “evento” é a interrupção das “coordenadas universais através das quais a realidade se apresenta a nós”, no qual o termo universal emerge como palavra-chave fundamental neste processo.

Embora seja verdade que as especificidades do indivíduo desempenham um papel de primária importância, é igualmente verdade que as categorias mentais que estruturam a nossa atividade cognitiva têm uma natureza intersubjetiva. É um processo real de produção do conhecimento. Daí a decisão de Foucault em usar, como sinônimo de episteme, a palavra “positividade”. O “discurso”, entendido como um dispositivo de significação, como um meio de produção de conhecimento – tanto cognitivo quanto coletivo – é definido por Zizek em Event como “transcendental”. Zizek explica:

A abordagem transcendental nos torna conscientes de que, para um naturalista científico, existem realmente só fenômenos materiais que se verificam no espaço e no tempo, regidos por leis naturais, enquanto para um tradicionalista pré-moderno, até mesmo os fantasmas [...] são parte da realidade, e não apenas nossas projeções humanas (p. 5).

O “evento”, portanto, opera num plano transcendental, envolvendo a episteme, ou seja, a estrutura epistemológica, o paradigma cognitivo. Cada era, de fato – como o Renascimento, o Barroco, a Modernidade – é inaugurada por um “evento”, pela emergência de novas coordenadas transcendentais, dentro das quais organiza-se e produze-se a realidade (ou seja, o mundo como nós o percebemos e o estruturamos de forma espontanea e irrefletida). O discurso é um fenômeno “a priori”, mesmo se – como explicado por Foucault em As palavras as coisas – é um “a priori” histórico, através do qual se produz o discurso, a formação discursiva que molda toda as literaturas, aquele “a priori” diferente de geração em geração que rege o nosso fazer e o nosso pensar. Não é, no entanto, um “a priori” imutável e eterno: é a episteme da Renascença que torna possível que os fantasmas sejam concebidos como parte da realidade, enquanto é a “positividade” do moderno que nos convence de que existem realmente apenas os fenômenos materiais de espaço e tempo regidos por leis naturais.

Os fantasmas – em forma de bruxas – sâo aqueles que aparecem em Macbeth no início da tragédia de Shakespeare. E são bruxas reais, in praesentia. Com o “evento” moderno da psicanálise os fantasmas se tornaram “sound and fury, / Signifying nothing”, barulho sem sentido: somos nos que nos tornamos, hoje, as bruxas de nós mesmos.

Prof. Yuri Brunello

e-mail: ybrunelloomatic@gmail.com