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Juvenescence. A Cultural History of Our Age

Hoje iremos diretamente ao livro que foi, ao nosso ver, o livro-chave de 2014: Juvenescence. A Cultural History of Our Age de Robert Pogue Harrison (The University of Chicago Press, Chicago and London, 2014), leitura imprescindível para quem quiser, como no nosso caso, pensar – e, sobretudo, repensar – a literatura.

O que torna o volume de Harrison uma verdadeira surpresa é a sua originalidade teórica. Harrison já apresentou algumas das teses de Juvenescence num ciclo de conferências realizadas em maio de 2010, em Paris, ao Collège de France. Obviamente a importância de Juvenescence não depende só de uma questão de método. O assunto escolhido também contribui, e muito, para tornar o livro um texto de enorme interesse. A conservação de elementos infantis durante a vida adulta – a neoteny, neotenia, da qual trata amplamente Juvenescence – representa, de fato, um tópico a ordem do dia na nossa cultura pós-moderna, época do “fim da história”.

Para entender melhor, partimos de um dado que se refere ao Brasil. O autor não aborda diretamente a neotenia evocando perspectivas latino-americanas, nem o Brasil, mas Juvenescence oferece várias sugestões hermenêuticas que combinam perfeitamente com a atual realidade brasileira.  Nas últimas duas décadas aqui na América Latina a releitura em chave “anti-essencialista” do conceito de identidade, colocou a categoria do hibridismo identitário, das identidades “em trânsito” como alternativa pós-moderna ao Eu moderno (o “velho” Eu da modernidade: o Eu Mae, Pai, Marido, Esposa, Partido, Nação, Igreja, etc.). Não precisa nem mencionar o sucesso, aqui no Brasil, de livros como Culturas híbridas de Néstor García Canclini ou de textos como A identidade cultural na pós-modernidade de Stuart Hall. A identidade pós-moderna mudou de status:  passou a ser  descentralizada ao invés de monocêntrica, plural ao invés de singular, reticular ao invés de vertical.

A neotenia que protagoniza a history of our age de Harrison, pelo contrário, não se deixa investir pela dicotomia – e nem pela interseção puramente lúdica – entre identidade e alteridade, entre tradição e inovação. O velho e o novo – que no segundo capítulo de Juvenescence intitulado Wisdom and Genius Harrison sintetiza na articulação entre a sabedoria e a genialidade – estão sempre presentes e a relação entre eles não é de oposição, mas de complementaridade, de originária reciprocidade criadora. O filósofo que – graças a uma intuição de rara sutileza – Harrison menciona como representativo dessa fecunda coincidentia oppositorum alternativa ao historicismo hegeliano é Giambattista Vico. O termo utilizado em Juvenescence para definir esta articulação é heterocronia; ou seja, a característica de ter “muitos tipos diversificados de idades: biológica, histórica, institucional, psicológica” (p. 2). Assim, “enquanto o gênio liberta as novidades do futuro, a sabedoria recebe as heranças do passado, renovando-as no processo de transmissão para os mais jovens” (p. 41).

Na pós-modernidade esses dois polos encontram-se conjugados de forma invertida: as propriedades de permanência e de continuidade estão ligadas ao novo e não mais ao velho. Depois do fluxo criativo e produtivo das últimas duas décadas, “ninguém sabe se existe suficiente plasticidade juvenil na psique humana para a adaptação às revoluções tão aceleradas dos nossos gênios frenéticos” (p. 43). Isso nos leva a perguntar, junto com o autor: se a identidade se constitui através de rupturas, qual a possibilidade para um futuro outro?

Harrison apresenta exemplos de fraturas que historicamente foram capazes de instituir culturas novas. Ele analisa a filosofia socrática, o cristianismo, o iluminismo e a fundação da Republica americana. Analisando a gênese da constituição americana, o autor de Juvenescence observa como na morte de Lincoln é possível enxergar tanto uma criação destruidora como uma destruição criadora: o assassinato de Lincoln, que acompanhou o fim da guerra de secessão americana, consolidou a vida nova de uma nação nova. Harrison nos lembra do Júlio Cesar de Shakespeare e do assassinato de Cesar, evento antes do qual Décio, um dos conspiradores, diz para Cesar, interpretando um pesadelo sangrento que Cesar teve: o sonho “é sinal certo de que de vós a grande Roma há de tirar / sangue renovador” (p. 111). Sangue renovador, explica Harrison, foi também o sangue derramado por Lincon. Renovador, dentro da literatura, foi também o modo como Dante regenerou Virgílio, assim como Virgílio tinha regenerado Homero (p. 114). Novat reiterando.

Em nossa opinião, porém, o fascínio de Juvenescence é devido à sua perspectiva teórica: Harrison tem o mérito de abordar a história da relação entre o tema do rejuvenescimento e a questão dos seus desdobramentos internamente à cultura ocidental, conseguindo se posicionar além da maioria dos paradigmas dominantes no pensamento contemporâneo. O próprio autor declara várias vezes em Juvenescence que um dos resultados cruciais do seu trabalho é de cunho metodológico: “a minha intenção nesse livro é de oferecer uma teoria, e não uma historia, da neotenia cultural” (p. 73).

Para propor uma perspectiva realmente nova, então, Juvenescence não abraça o materialismo cultural historicista dos cultural studies nem o pós-estruturalismo, qual seja a vertente: linguístico-desconstrucionista, spinoziano-vitalista, lacaniana ou marxista. Harrison chega a discernir um paradigma outro, evitando articular visões de literatura e de cultura a partir de concepções de mundo ossificadas. No primeiro capitulo, o mais teórico, o autor de Juvenescence mostra um interesse e um domínio de assuntos próprio de áreas – como a biologia ou a genética – pouco aproveitadas dentro da critica literária.

Com isso não estamos dizendo que Juvenescence seja impregnado de positivismo. O background filosófico de Harrison é, ao contrario, fenomenológico-hermenêutico, ele é o autor de The Body of Beatrice, um dos trabalhos mais exegeticamente corajosos da critica dantesca das ultimas décadas. Pelo contrário, o brilhante ecletismo teórico de Juvenescence torna o livro um claro exemplo de como conceitos científicos podem ser deslocados dos espaços teóricos de pertencimento, libertando assim potencialidades inesperadas. O make it new vale também para a ciência. O cientificismo dos estudos literários (semiologia, estruturalismo) expressou corretamente a exigência – numa época que era dominada pelo impressionismo critico – de um maior rigor “técnico”.

Mas um livro como Juvenescence mostra também o outro lado da moeda: a abordagem literária, histórica e filosófica pode resgatar conceitos geralmente limitados a especialistas das ciências “exatas”. Às vezes a história é a tradição que sana, com a sua sabedoria, as feridas produzidas pelo explodir de geniais inovações técnicas, assim como às vezes são a ciência e a técnica que traduzem no nível da praxis (da sabedoria) os ideais revolucionários que movimentam a história.

Publicar uma versão em português desse volume tão original e precioso, em suma, se faz mais do que necessário.

Prof. Yuri Brunello

e-mail: ybrunelloomatic@gmail.com