Print

Berlim légendes

A identidade é sempre reacionária. Ela prende, aprisiona o desejo: padroniza, torna tudo estéril, velho desde o momento da concepção. Identitária, por exemplo, foi a reprodução da lógica da escravidão na “República dos Palmares”.

Considero Vasco Pratolini, realista italiano do século passado, um autor identitário (Via de’ Magazzini, Il quartiere etc.). Pratolini estreou com menos de trinta anos. Mas é possível imagina-lo jovem? Mesmo com vinte anos, e mesmo sem querer, Pratolini se apresentava logo como um senhor, como um idoso, em virtude da sua escrita.

A identidade é sempre reacionária. Assim escrevemos no primeiro artigo dessa nossa coluna, falando da Europa. Houve pessoas que concordaram, outras que fizeram cara de nojo. Nada mais apropriado, portanto, do que retomar o assunto com alguns apontamentos que iremos fazer a partir do extraordinário Berlin légendes ou la Mémoire des décombres, de Olivier Morel (Paris, Presses Universitaires de Vincennes, 2014), volume em francês de rara finura intelectual.

Morel é uma daquelas personalidades criativas de difícil definição. Intelectual? Acadêmico? Cineasta? O autor de Berlin légendes é professor de Film Studies na Notre Dame University, mas é também diretor de cinema – o seu On the Bridge foi apresentado aqui no Brasil no Festival do Rio 2012 –, além de ser um fotógrafo reconhecido e um ativo public intellectual, como testemunham as suas contribuições para “Le Monde Diplomatique”. A criatividade de Morel prefere, então, caminhos plurais. Nisso o autor de Berlin légendes lembra Pier Paolo Pasolini, outro artista que também acabou sendo seduzido pelo fascínio da multiplicidade. Pasolini era mais diretor de cinema ou mais polemista? Era mais dramaturgo ou mais romancista? Pasolini, Morel, mas também Jean Cocteau, Gordon Parks e assim por diante: todos “vastos”, todos que “contêm multidões”, para evocar o que (“I am large, I contain multitudes”) o poeta americano Walt Whitman escrevia em Folhas de relva.

Em Berlin légendes, Morel tece uma ode a Berlim de excepcional beleza. Excepcional no sentido literal da palavra: não é, de fato, uma a regra, mas uma exceção encontrar um olhar, como nesse caso, capaz de transformar uma Cidade (em letras maiúsculas) numa cidade (em letras minúsculas): ou seja, capaz de tornar visível – graças a um deslize epistemológico – o que não permite a uma identidade de se estruturar, de participar de uma lógica, qualquer seja, de territorialização. Eis um trecho de Berlin légendes: “Não que seja impossível reconstruir a história ou nomear os traumas que estão ligados a ela: o fato é que assim que houver choque, há um certo regime de restos: um resto não-dito, impossível de entender através das categorias comuns, um resíduo de brilho, um gosto de ruína quase agramático” (p. 17). As ruinas, as décombres do subtítulo estão explicadas. Como podemos – nós, leitores com pés fixamente plantados em solo latino-americano – deixar de pensar no Brasil?

Pensamos nos dois principais paradigmas territorializantes que acompanharam a narração do Brasil, do ponto de vista urbanístico, no decorrer da sequência modernidade/pós-modernidade: o modelo Gilberto Freyre e modelo Roberto DaMatta; o primeiro, moderno, o segundo, pós-moderno. O Brasil de Gilberto Freyre é feito de sínteses, de encontros, de unidades: cultura europeia e cultura africana, agenciamentos constantes entre oligarquias e subalternos. Marilena Chauí, entre os outros, uns quinze anos atrás, mostrou com inalcançável nitidez como nesta identidade a proposta cultural e política do “Estado Novo” de Getúlio Vargas encontrou uma consistência ideológica determinante.

Na versão de um brilhante antropólogo como Roberto DaMatta, ao invés, a síntese torna-se algo de estratificado, plural, não unitário em perpétuo devir. E uma coisa é certa: pode ser moderna ou pós-moderna, congelada nas dobras da história ou “em trânsito”, compacta ou fragmentada, pode ser hierárquica ou reticular, mas a identidade continua sendo uma ideologia, um “discurso”.

Voltamos a Morel para apreciar melhor a especificidade de Berlin légendes. Morel interpreta Berlim de forma oposta às modalidades Freyre ou DaMatta, escapando da ideologia, achando uma saída do discurso. Quem assistiu dois anos atrás no Rio ao filme de Morel On the Bridge pode entender facilmente o que estamos querendo dizer: a película-documentário representa a figura mais identitária dos EUA: os veteranos de guerra. Todavia, a perspectiva – na reconstrução da vida pós-guerra de alguns desses soldados – é outra. On the Bridge é quanto mais longe do heroísmo prevísível e estereotipado seja possível imaginar. Ao contrário, os veteranos são representados na condição de feridos, de traumatizados (a doença é a PTSD, o post-traumatic stress disorder).

Porém, é justamente essa condição “residual”, o status de doentes desses veteranos que, longe dos campos de batalha e das armas, os inspira a contar histórias, a compor músicas. O processo é o mesmo para Stéphane Hessel, George Tabori, Inge Deutschkron, Ilse Rewald, Wladimir Kaminer, Inka Parei, Zafer Senocak, Martin Walser, Christoph Hein, ou seja, os autores que Morel indaga no livro publicado pelas Presses Universitaires de Vincennes, escolhendo uma abordagem de cunho pós-estruturalista, mas não pós-moderno. Os autores analisados por Morel em Berlin légendes, de fato, de Berlin não valorizam a identidade, mas a “diferença”, o seu potencial de corpo urbano “sem órgãos”. A residualidade da literatura considerada por Morel é uma residualidade “do fora”, inacessível, “suplementar” (dá para ver que Morel é um dos melhores discípulos, dos discípulos diretos, de Derrida).

Atenção, porém: citando o “corpo sem órgãos”, nós não estamos pensando em Deleuze, mas em quem primeiro pensou nessa expressão: Antonin Artaud. A dimensão que permeia a cidade deleuziana é feita de “matéria vibrante” (vibrant matter), enquanto a Berlim de Hessel, Tabori, Deutschkron, Rewald, Kaminer, Parei, Senocak, Walser e Hein é um espaço vazio de desejos.

Pode-se pensar em algo mais magmático de uma cidade que foi a ponta de lança do americanismo na Europa na década de Vinte, que foi nazista até o fim da Segunda Guerra Mundial, que foi dividida e que se tornou – uma parte de Berlim pelo menos, a oriental – organicamente comunista, antes da cidade, novamente unificada, se apresentar hoje como o ápice neoliberal da austerity?

Prof. Yuri Brunello

e-mail: ybrunelloomatic@gmail.com