Literatura-de-fora

Lacuna

Nos grandes textos literários, escreve Nicola Gardini, “o que está na página não é suficiente, não pode ser tudo”. A grande literatura está fora da literatura.

Com a publicação de Lacuna. Saggio sul non detto (Turim, Einaudi, 2014, texto ainda não traduzido no Brasil) Gardini propõe diversas sugestões valiosas acerca da maneira de pensar a produção literária. De extremo interesse é o modo como o autor aborda o conceito de falta. “A literatura é uma falta perenemente renovada pelas palavras”. Um pertinente exemplo dessa noção é uma das férteis aporias formais, das quais Lacuna debate: a assimetria entre o enredo e a história. Gardini discrimina enredo e história, afirmando que “a totalidade da história não está no enredo, nos signos dos quais o enredo é composto, mas na representação que o enredo provoca na mente do leitor”. Se um soldado observar na areia as pegadas de um cavalo, por exemplo, pensará logo no cavalo, enquanto a mente do camponês associará tal fato ao arado, como reitera Gardini ao longo de Lacuna, citando Spinoza.

Mas aqui é necessário fazer uma pausa nesse resumo preliminar de Lacuna: não se trata de um livro constituído por um percurso de natureza exclusivamente teórico-filosófica. O autor não renuncia, é claro, ao confronto com teóricos da literatura, com comparatistas e filósofos; o foco, porém, é declaradamente e programaticamente literário. A maioria dos trechos de Lacuna analisados por Gardini ou por Gardini tomados como exemplos são trechos de romances, de poemas, de reflexões diarísticas ou de considerações paratextuais de artistas da escrita. De fato, além de ser o estudo de um professor universitário – Gardini leciona em Oxford e é um pesquisador internacionalmente reconhecido –, Lacuna é a rigorosa reflexão critico-teórica de um importante escritor italiano contemporâneo: Le parole perdute di Amelia Lynd, publicado em 2012 pela editora Feltrinelli de Milão, é uma admirável pérola estética que mereceria uma imediata tradução em português.

Retomamos o nosso caminho dentro do livro. A lacuna perscrutada no segundo capítulo é aquela “que preside a construção da história”, ou seja, a omissão concebida enquanto fenômeno objetivo, narratológico. É notável ainda a extensão do corpus investigado por Gardini: desde Platão e Aristóteles (“é preciso que a fábula, visto ser imitação duma ação, o seja duma única e inteira, e que suas partes estejam arranjadas de tal modo que, deslocando-se ou suprimindo-se alguma, a unidade seja aluída e transtornada”, Poética, VIII, tradução de Jaime Bruna) até o romancista italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa, o qual elogiava o “continuo trabalho de eliminação” de Stendhal. O autor do volume mede os recursos do que chama de “lacunosidade objetiva”, aproveitando a sua sólida formação clássica. Lacuna considera Manzoni e Proust, assim como Homero e Tácito, alternando constantemente dentro da mesma página referências tanto produções clássicas quanto contemporâneas. Tudo isso de forma fluente, mas ao mesmo tempo sem perder nada no que diz respeito ao rigor analítico.

Nos últimos dois capítulos, a análise envereda para uma abordagem que segue a perspectiva oposta, a perspectiva subjetiva, felizmente emblematizada na imagem spinoziana anteriormente mencionada. O leitor encontra no fenômeno do não dito um “menos” que gera um “mais” em termos de produção mental. Remetendo a um traço de cunho particular, Gardini escreve: “Eu tenho um diário há muitíssimos anos. Se não fosse lê-lo novamente, eu permaneceria na convicção de que algumas coisas aconteceram em tempos diferentes. Acredito que dois acontecimentos sejam longe e distintos e o meu diário me revela que são contemporâneos. Outros acontecimentos, que acreditaria ter sido recentes, são antigos”. E conclui: “A mente, em suma, não é capaz de acolher a realidade na forma da crônica. A mente ama o romance, ou seja, os enredos: seleciona e combina”.

Temos, porém, de ter muito cuidado. Esse brilhante estudo sobre o não dito passa longe de ser um elogio da estética da recepção. Pelo contrário, entre literatura e textualidade o pacto é indissolúvel. Gardini fala do que na literatura é omisso e declara que “as omissões são parte estruturante da narração e, portanto, têm que ser compreendidas e eventualmente preenchidas a partir daí, não ‘de fora’, diferente de como os críticos insistem em fazer, desviados também pelas declarações do autor”.

Uma perspectiva semiótica, então, que concerne a interpretação e os seus limites? Nada disso. Esse “de fora”, ao qual Gardini refere-se e que envolve tanto o leitor como a escritura, é a experiência de um desejo, um desejo literário e não simplesmente instintual: desejo de um “mais”, considerando que a escritura “será tanto mais literária quanto mais intenso souber induzir aquele desejo”.

Uma verdadeira surpresa são as páginas dedicadas a Édipo. Conseguir apresentar sob nova luz um mito tão rico – mas ao mesmo tempo tão inflacionado – constitui um desafio enorme. E Gardini não falha: a noção na qual ele foca é a de desidentificação. Desidentificar? Sofoclés chega às formidáveis alturas trágicas de Edipo rei graças à dissociação do núcleo trágico entre enredo e história, presente e passado, fictio e subversão da ordem do discurso. Gardini nos lembra de como o tempo de Édipo seja o tempo do enigma, antes do trágico explodir, com a erupção de um incompatível tempo histórico, dentro da configuração dramatúrgica da peça.

O que é o tempo do enigma? “é a negação do tempo e da sintaxe”, explica o autor de Lacuna. Enigmática, de fato, é a experiência pré-platônica do tempo e do espaço, se vista segundo coordenadas platônicas e pós-platônicas. Ou seja, os pressupostos da metafisica ocidental, fundamentados na invenção da dialética e na “introdução do princípio de contradição”. O enigma em Edipo rei é a realidade, oximórica e não linear, que pertence a um paradigma outro, a origem na sua condição de “sempre incipiente temporalidade”.

Sófocles desidentifica enigma e história, tanto que a grande literatura do Edipo rei surge nessa diferença: “Vá-se do a priori de um código mítico ao a posteriori de uma cultura histórica”. Gardini agudamente acrescenta: “Édipo adverte, mesmo que confusamente, as pressões daquela razão histórica – já quase oficial – que coloca no passado e não no futuro a explicação do presente. Desconstrói o texto do presente e o leva aos seus princípios de verdade – nesse ponto não mais reconstituíveis dentro da velha ordem”. E conclui: “Com Édipo rei a literatura ocidental faz ato formal de submissão à lei do enredo. Um enredo verdadeiro se opõe a um enredo falso. O desenvolvimento da tragédia não corresponde aos fatos trágicos. Entre isto e aquilo transcorreu tempo; há uma lacuna temporal”.

O recorte do nosso olhar específico acabou privilegiando Sófocles. A originalidade das visões crítico-teóricas que Gardini expressa em Lacuna, porém, se manifesta também em relação a outros textos. E não faltam relevantes descobertas críticas, como a interpretação de Armance de Stendhal em uma sofisticadíssima ótica de gênero (Octave, personagem do romance, não é impotente, mas homossexual).

Lacuna, em conclusão, confirma o status de excelência alcançado por Gardini como pesquisador. E, ao mesmo tempo, em perfeita simbiose, como escritor.

Prof. Yuri Brunello

e-mail: ybrunelloomatic@gmail.com