Literatura-de-foraL’identité malheureuse

O ano de 2015 será lembrado pelos atentados terroristas na França.

Muito já se escreveu sobre isso, mas dois são os elementos que queremos destacar: as reações em defesa da identidade francesa e, opostas a isso, as dinâmicas de busca, entre os grupos marginalizados, de um reconhecimento identitário. Claro que há muito mais em jogo. Todavia, focar nessa polarização pode abrir perspectivas interessantes.

Há alguns anos, por exemplo, o filósofo francês Alain Finkielkraut vem insistindo na abordagem identitária ao analisar os conflitos que atormentam a França contemporânea. Publicado em francês um ano antes do atentado terrorista contra o “Charlie Hebdo”, o volume L’identité malheureuse (Paris, Stock, 2013) ainda não foi traduzido no Brasil, mas a urgência de uma tradução desse texto é grande, porque mostra, com muita eficácia, uma das posturas que na Europa cresce cada dia mais: a defesa da identidade proposta de uma nova forma, fora de qualquer suspeita de racismo, através de um pseudo-pensamento de “cidadania” em uma versão antieuropeista e “nacional”.

Para abordar melhor L’identité malheureuse, precisamos partir de um outro luto deste ano: a morte de René Girard, teórico da literatura e antropólogo francês. Tal dramático acontecimento verificou-se poucos meses após a publicação de uma das homenagens mais relevantes oferecidas a Girard ao longo da sua carreira: Mimesis, Desire, and the Novel (Pierpaolo Antonello e Eather Webb, org.,East Lansing, Michigan State University Press, 2015), uma coletânea de textos que foram apresentados no ano de 2011 em várias instituições internacionais para comemorar os cinquenta anos da saída de Mentiras românticas e verdade romanesca (1961), o livro que lançou Girard na cena cultural internacional.

Mentiras românticas e verdade romanesca, aqui no Brasil traduzido por Lilian Ledon da Silva e publicado pela editora É Realizações (São Paulo, 2009), constitui o primeiro tijolo dentro da arquitetura teórica girardiana que irá desenvolver-se ao longo dos anos. Vejamos um dos componentes mais interessantes desse grande livro: as considerações acerca do “fim do desejo”. Dentro do pensamento de Girard, o que ativa a dinâmica da produção literária é o “desejo mimético”. Os grandes romances da literatura ocidental são expressão da necessidade antropológica de identificação com o Outro.

Observa Girard como no Dom Quixote de Cervantes, um dos grandes textos estéticos de fundação do romance moderno, o protagonista “renunciou em favor de Amadis a prerrogativa do indivíduo: ele não escolhe mais os objetos do seu desejo, é Amadis que deve escolher por ele”. Girard identifica nesse processo um nó crucial: “a paixão cavalheiresca estipula um desejo segundo o Outro que se opõe ao desejo segundo Si próprio, que a maioria de nós se vangloria de usufruir. Dom Quixote e Sancho emprestam ao Outro seus desejos com tal intensidade e tal originalidade que o confundem perfeitamente com a vontade de ser Si próprio”. A criação literária é consequência do desejo vivo de desidentificação, a mimese com o Outro que media o desejo, tanto do autor quanto das personagens. Madame Bovary é um dos outros exemplo que Mentiras românticas e verdade romanesca fornece.

Ao fim do desejo corresponde o fim do romance: “Dom Quixote renuncia a seus cavalheiros, Julien Sorel à sua revolta e Raskolnikov a seu super-homem”, escreve Girard. Eis que a verdade romanesca toma o lugar da mentira romântica: mas isso foi possível somente graças à desidentidade que o “espaço literário” proporcionou: “os grandes romancistas atravessam o espaço literário que Maurice Blanchot define, mas não permanecem lá. Eles se jogam para além desse espaço rumo ao infinito de uma morte libertadora”, conclui Girard, evocando, não por um acaso, um fundamental livro subversivo como O espaço literário de Blanchot.

E L’identité malheureuse, de Alain Finkielkraut? Um dos capítulos de L’identité malheureuse é intitulado A vertigem da desidentificação. Finkielkraut traça um polêmico perfil dos franceses, os quais – acreditando que a identidade francesa é integralmente mestiça – acham que isso signifique “enfrentar com dignidade a nova realidade multicultural”. O autor termina o capítulo questionando se é possível mesmo chamar de digna uma “dignidade levada até o cancelamento de se mesma”. L’identité malheureuse tenta responder “ao desafio contemporâneo da convivência”, sem voltar ao pathos romântico e nacionalista do enraizamento, mas avançando em uma “proposta identitária” que contraste o cosmopolitismo dos bourgeois bohemian e dos intelectuais pós-modernos, incapaz de entender a razão pela qual o povo francês está-se tornando reacionário, protecionista e particularista. “A nossa herança”, explica Finkielkraut, “que não nos faz sermos superiores, merece ser preservada e alimentada”: “a versão francesa da civilização europeia desenha um mundo que se oferece tanto aos autóctones quanto aos que acabaram de chegar”.

Para fortalecer a sua tese, Finkielkraut menciona Raça e história, de Lévi-Strauss: “não é, de fato, uma culpa o por o modo de viver ou de pensar acima de todos os outros, nem o sentir-se pouco atraído por esta ou aquela pessoa, cujo estilo de vida, em si respeitável, afasta-se demais do estilo de vida ao qual se é tradicionalmente ligado”. Multiculturalismo do Outro? Nem pensar. Finkielkraut inverte os termos do problema e avança em uma questão: “Mas não somos, nós também, o Outro do outro?”

Eis a lição do romantismo nacional da “modernidade tardia”! Não desejar, mas ser objeto de desejo. É a voz da identidade mumificada que fala, a identidade congelada nos cartões-postais. Voz sem desejo, excluída do jogo metafísico e abstrato, mas vivo, do “espaço literário”. Em Mentiras românticas e verdade romanesca, Girard explica o que ele intende com a expressão mentiras românticas: “o vaidoso romântico não se quer mais discípulo de ninguém. Ele se convence de ser infinitamente original. Por toda parte, no século XIX, a espontaneidade se torna dogma, destronando a imitação”. E acrescenta Girard: “o vaidoso romântico quer sempre se convencer de que seu desejo está inscrito na ordem natural das coisas ou, o que vem a dar na mesma, que ele é a emanação de uma subjetividade serena, a criação ex nihilo de um Eu quase divino”.

Eis o retrato, ante litteram, do vaidoso romantismo nacional da “modernidade tardia”, de um volume, L’identité malheureuse, vaidoso e vazio como qualquer pensamento identitário: um pensamento indiferente às mediações do Outro e confiante do que o Eu existe.

Prof. Yuri Brunello

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