Literatura-de-foraNosso amplo presente

Nosso amplo presente é o titulo do último livro de Hans Ulrich Gumbrecht lançado no Brasil. O volume foi publicado há poucas semanas pela Editora Unesp (2015, pp. 160). Pretendemos elencar aqui os motivos que tornam esse trabalho de Gumbrecht, assim como os últimos que foram recentemente traduzidos no Brasil, de crucial relevância.

Uma das preocupações constantes desta coluna quinzenal é a identificação e a análise das formas do contemporâneo, observadas através do nosso olhar “de fora”. Vêm disso as tantas perguntas que direcionam as leituras que estamos fazendo: como se articulam as estéticas dentro dos fenômenos culturais do nosso tempo? Quais as relações entre produção, discurso e poder? Existem margens de emancipação na convergência entre o signo e o Real? Gumbrecht é um dos poucos intelectuais de hoje que, além de sugerir novas perguntas, tenta elaborar respostas. Trata-se de um motivo a mais para aprofundar-se na leitura deste último precioso contributo teórico traduzido por Ana Isabel Soares.

Nosso amplo presente  realiza uma nítida radiografia das realidades estético-culturais dos tempos que estamos vivendo. Gumbrecht se concentra nas culturas que define como “culturas da presença” e aproveita a ambiguidade semântica da palavra “presente”, a qual remete tanto a uma colocação cronológica (a contemporaneidade) quanto à condição de algo estar presente na nossa frente. Não é por acaso que a palavra “presença” vem do latim prae-esse, como o autor oportunamente lembra.

Se pensarmos nessa “presença” como uma das expressões correntes de materialismo, não podemos compreender por completo as novidades abertas pela perspectiva teórica afirmada em Nosso amplo presente. De fato, encontram-se muito mais diferenças do que afinidades entre o atual pensamento de Gumbrecht e, por exemplo, o materialismo à la Spinoza de Jane Bennet, a teórica que cinco anos atrás, graças ao texto Vibrant Matter  – mistura deleuziana de ecologia e pós-modernismo –, obteve um sucesso importante entre os intelectuais europeus e, principalmente, norte-americanos. Da mesma forma, a concepção de Gumbrecht diferencia-se significativamente do materialismo pós-lacaniano – o materialismo psicanalítico da “falta” – de Jacqueline Rose, do “materialismo sem matéria” à la Quentin Meillassoux ou, por fim, do materialismo da continuidade estrutural entre palavras e coisas, característicos dos Cultural Studies.

Prosseguindo o caminho inaugurado com outros trabalhos como Produção da presença (Rio de Janeiro, PUC, 2010) ou Depois de 1945 (São Paulo, Editora Unesp, 2014), Gumbrecht especifica a sua peculiar noção de materialidade. A premissa da argumentação gumbrechtiana é que a contemporaneidade representa a época na qual as “culturas do sentido” – assim ele define as hermenêuticas e as estéticas ameaçadas pelas “culturas da presença” – entram em forte crise. O impasse, porém, tem a vantagem de estimular outras abordagens, a circulação de questões geralmente pouco valorizadas. Uma das perguntas que norteiam o livro é: “qual poderia ser um modelo alternativo que permitisse pensar através das realmente tensas oscilações harmoniosas entre linguagem e presença, em sua variedade?” A resposta que Gumbrecht fornece é o modelo da “presença”, um pattern que privilegia a materialidade concebida como condição interna à linguagem e não como experiência, materialistamente, em conflito com a linguagem, com os dispositivos simbólicos.

Gumbrecht recupera de Bakhtin o conceito de cronotopo, de combinação entre o espaço e o tempo no âmbito da narração. O autor de Nosso amplo presente indica com o termo cronotopo a “premissa para a nossa experiência da realidade” dentro de uma determinada conjuntura cultural e histórica. O cronotopo moderno – “do sentido” – fundamenta-se na convicção de que “tudo o que seja expresso tem de ser puramente espiritual”, que, além da superfície física, existe um sentido, conservado na absoluta imaterialidade, nas mais densas e sobreabundantes profundezas. Existe, de fato, uma correspondência entre a erosão dos paradigmas modernos – a crise da metafísica ocidental, do Eu enquanto identidade, do sujeito cartesiano, do historicismo hegeliano – e o esvaziamento desse cronotopo, em prevalência lógico-abstrato, no nível do significado. Nas “culturas do sentido”, em suma, a dinâmica da perda determina um esvaziamento semântico, prejudicando o processo de produção de sentido.

As “culturas da presença” funcionam de forma exatamente oposta. Traçando o perfil dessas culturas alternativas, geradas e consolidadas a partir do esgotamento do cronotopo moderno, Gumbrecht propõe ao leitor algumas intuições teóricas de inegável força inovadora, seja do ponto de vista filosófico, seja do ponto de vista antropológico-literário. Acompanhando o raciocínio gumbrechtiano, descobrimos que no modelo “da presença”, ao esvaziamento semântico não segue um curto-circuito no plano do sentido, sim uma abertura, densa e plena, em favor da materialidade. Dentro das “culturas da presença” o enfraquecer-se da linguagem corresponde a um fortalecer-se da dimensão material interna ao texto estético.

Para o autor do Nosso amplo presente, a “saída” da linguagem é um processo textual extremamente concreto. Tal característica constitui um dos pontos de força do pensamento gumbrechtiano, alinhando-o do lado oposto, por exemplo, das teorias biopolíticas: estas últimas também referem-se ao “fora” da linguagem; esse “fora”, porém, revela-se algo místico, impalpável, confusamente transcendente. Pelo contrário, uma das propriedade da materialidade sobre a qual Gumbrecht teoriza é ser tangível.

Encontramos materialidade na escrita de Céline: “aí o ritmo da prosa copia o ritmo dos movimentos ou de eventos a serem evocados e assim estabelece uma relação analógica com estes movimentos ou eventos, que também evitam o principio digital de representação”, exemplifica Gumbrecht. E conclui: “os textos de Céline surgem abertos para serem afetados pelas coisas e a ecoarem com elas”. Nada a ver, portanto, com os hierofantes do culto biopolítico nem com a “obra aberta” de Umberto Eco.

A materialidade resgata o mundo das coisas, tanto quanto a própria linguagem, se concebida como entidade “física”. Consideramos “o ligeiro toque de som na nossa pele” determinado pela fala: o percebemos, “mesmo quando não conseguimos compreender o que a palavras querem significar”, sendo que o que interessa, de fato, é o ritmo da fala, “que podemos sentir e identificar, independentemente do sentido que a linguagem ‘carrega’”.

No inicio da década de 1970 Fredric Jameson acusou o estruturalismo de reduzir a linguagem a uma “casa-prisão”. Em A imagem sobrevivente (Rio de Janeiro, Contraponto, 2013), o filósofo da arte Georges Didi-Huberman, analisando a produção de Aby Warburg, descreveu os “fantasmas” – “fantasmas para gente grande”, segundo Warburg – como figuras capazes de se evadirem do cárcere do “a priori histórico”. Configurando-se como sobrevivências de cronotopos ultrapassados, os fantasmas warburguianos perturbam a episteme dominante, dentro da qual tais fantasmas têm visibilidade, mas não são dizíveis pelo fato de serem inconsistentes.

Já mencionamos nesta coluna os fantasmas, comentando Event, de Slavoj Zizek, o qual indica com a referência aos fantasmas, as interferências discursivas geradas pelas rupturas epistemológicas. No caso de Didi-Huberman, a coisa é diferente: o espectro é uma dissonância icônica que sobreviveu por ser proveniente de um passado ancestral, transversalmente “a qualquer recorte cronológico”, desorientando, anacronizando.

As interferências da materialidade na forma estética, que Gumbrecht evoca ao longo de Nosso amplo presente, não são espíritos sem corpo: para ir além da “casa-prisão” linguística, segundo a visão de Gumbrecht, é preciso de corpo, sim: de matéria, de volume. E isso no presente; tanto que a presença não configura-se como um reflexo do passado, mas como uma produção viva. É dessa valorização do presente que vem o segundo adjetivo do título, ou seja, “amplo”. A dissolução do cronotopo da modernidade e a afirmação do novo cronotopo – a formação discursivo-material da “presencia”, na qual sempre mais mergulhamos – tornou o presente um espaço surpreendentemente extenso: “ao invés de deixar constantemente para trás os nossos passados, no novo cronotopo somos inundados pelas memórias e pelos objetos do passado”.

Gerou-se assim um presente sempre em expansão, sempre mais amplo, “entre o futuro ameaçador e o passado em que nos vemos emergidos”.

Prof. Yuri Brunello

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