PLANEJAMENTO: PARA ALÉM DO BUROCRATISMO

CarmensitaCarmensita Matos Braga Passos

O planejamento, na maioria das vezes, é visto como mais uma exigência burocrática, um documento a ser arquivado, que só é elaborado para se desobrigar dessa cobrança, e não porque se perceba necessidade ou algum sentido em realizar. As reflexões a seguir buscam superar essa compreensão de planejamento, percebe-lo como uma atividade inerente à ação docente e ir além de uma perspectiva meramente formal e burocrática que o limita ao preenchimento de formulários e ao atendimento de exigências administrativas. O planejamento é a previsão, a projeção de uma prática. Contribui para guiar, orientar uma ação em busca de resultados. No caso do ensino, planejar envolve decidir sobre o quê e o como ensinar, com base nas concepções do por quê e do para quê ensinar. Não são, portanto, decisões meramente técnicas, uma vez que envolvem escolhas, interesses e fundamentam-se em valores. Para além do desobrigar-se de uma exigência burocrática, planejar é refletir sobre a prática pedagógica, para adequá-la a seu contexto, solucionar problemas que se apresentam, superar dificuldades, enfim para aperfeiçoar a ação docente. Ao planejar o professor torna-se protagonista de sua ação, negando-se a ser simples executor de esquemas elaborados por outrem. Mesmo partindo de propostas pensadas longe do espaço de sua sala de aula, o professor pode tomá-las como objeto de reflexão, avaliando-as, ressignificandoas, redirecionando-as, apropriando-se crítica e criativamente delas, imprimindo-lhes o significado desejado. Planejar é dar sentido à ação, é questionar sobre a importância das práticas pedagógicas, do conteúdo ensinado, das exigências feitas ao aluno, do tipo de avaliação empregado, das atividades propostas. É perguntar-se: qual o significado de cada um desses elementos na formação do meu aluno? Somente a partir dessa concepção de planejamento é possível evitar uma ação docente fundada na reprodução de rotinas descontextualizadas e desmotivantes. A reflexão, a problematização e o questionamento do significado da ação desenvolvida permitem sua dinamização e renovação de acordo com a realidade para qual se destina. É através do planejamento que é possível encontrar caminhos para a efetivação dos princípios pedagógicos assumidos. O planejamento é a mediação entre aquilo que pensamos teoricamente ser a educação e o ensino, e a realidade concreta, como nos lembra Luckesi (1992:168) Para planejar torna-se necessário ter presentes todos os princípios pedagógicos a serem operacionalizados, de tal forma que sejam dimensionados para que se efetivem na realidade educativa. O planejamento deve ser flexível, contínuo e participativo. A flexibilidade deve ser uma característica inerente ao planejamento do ensino, pois trata-se de prática social, interativa, imprevisível. Traçar princípios norteadores para a ação não significa que seja possível prevê-la em todos os seus detalhes. Não se trata, portanto, de uma camisa de força, um esquema rígido de ação, mas um roteiro flexível de orientação para a ação. É como um mapa que orienta a viagem, mas não representa a totalidade da viagem. Como prática social, o ensino apresenta sempre situações que não se repetem, portando previsões rígidas não se encaixam nessa realidade. Estamos sempre lidando com a contingência, com o inesperado. Isso exige uma constante revisão, adaptação, contextualização do foi previsto inicialmente. Planejar é, pois, uma atividade contínua que percorre todo o processo, e não apenas realizada no início para não ser mais retomada. Dar ao planejamento uma perspectiva participativa garante que a ação a ser vivenciada, não seja esteja centrada na concepção de uma única pessoa ou de um grupo específico, valorizando apenas sua percepção da realidade, discriminando e excluindo outras leituras possíveis. Os alunos dão constantes evidências de sua percepção sobre o desenvolvimento do ensino aprendizagem, assim como outros sujeitos como: pais, outros professores, comunidade, demais profissionais da escola, pedagogos podem oferecer importantes elementos a serem considerados durante o planejamento. Do exposto, concluímos que, o planejamento numa perspectiva crítica, mais do que uma previsão técnica de objetivos, conteúdo, metodologia e avaliação, implica numa tomada de posição sobre a educação e o ensino, para, a partir de então, organizar a ação no sentido pretendido. Planejar é refletir sobre a ação docente, compreendê-la em seus determinantes, limites e possibilidades, e propor, com base nessa compreensão as possibilidades de construção de uma prática em constante superação.

O PLANO DE ENSINO E SEUS ELEMENTOS

Como vimos o planejamento que supera o burocratismo é uma reflexão sobre a ação pedagógica para que a partir de sua compreensão seja possível uma intervenção contextualizada e criativa. O registro desse processo de reflexão ao ser documentado converte-se no plano. Planejamento é o processo de reflexão, de tomada de decisão. Plano é o produto, que como tal pode ser explicitado em forma de registro, de documento ou não. (Vasconcellos, 1995:43) O plano desde que seja realmente o resultado de um processo reflexivo, pode adquirir vários formatos. O registro, a documentação não é o aspecto mais importante de um planejamento, mas tem sua relevância: serve de referencial para outros momentos de planejamento, é um registro textual das intenções e dos encaminhamentos pedagógicos dados a um determinado processo de ensino-aprendizagem. Sem pretensão de esgotar ou oferecer itens para compor formulários, o plano envolve uma reflexão em torno dos seguintes elementos: objetivos, conteúdos de ensino, metodologia e avaliação, que serão brevemente comentados a seguir.

OBJETIVOS

Os objetivos indicam as aprendizagens que se pretende desenvolver como conseqüência do processo de ensino. Constituem-se numa direção norteadora para a ação (não devem ser entendidos como previsão de um produto acabado). São os resultados buscados pela ação educativa. É a partir da definição dos objetivos que se pode acionar os meios adequados para atingi-los. Na definição dos objetivos devem ser considerados: as características dos alunos para os quais se dirige o ensino (nível de desenvolvimento, necessidades, interesses), a realidade social e institucional e as características da disciplina. Numa perspectiva crítica os objetivos devem propiciar o desenvolvimento: das capacidades mentais, do espírito crítico e da criatividade, de processos participativos, da relação teoria-prática, da solidariedade, do conhecimento cultural e científico. Neste enfoque a meta é superar níveis de aprendizagem que se limitem à reprodução de conhecimentos, à memorização de informações. É preciso ter consciência que as aprendizagens não se esgotam na dimensão cognitiva. O desenvolvimento do cidadão e do profissional (de qualquer área) envolve também as dimensões afetiva, ética, atitudinal, e em muitos casos envolve também aprendizagens motoras. A formação de um cidadão e de um profissional não se limita aos conhecimentos técnicos e científicos é, portanto, fundamental que os objetivos expressem isso. Cabe ainda esclarecer que, quanto à abrangência, os objetivos podem ser:

Gerais: que se constituem em diretrizes gerais para o trabalho pedagógico; expressam um posicionamento político sobre a relação da instituição formadora com a sociedade. Alguns autores denominam de finalidades. São definidos pelo sistema escolar (sistema federal de ensino – LDB, diretrizes curriculares – estadual ou municipal); pela instituição que define princípios e diretrizes através de uma proposta pedagógica; e pelos professores da disciplina. Nesse nível de abrangência são definidos: o papel da educação, do ensino, ou da disciplina na formação dos sujeitos.

Específicos: são os pequenos passos em direção ao alcance das finalidades. Referem-se a resultados de aprendizagens alcançáveis num espaço de tempo menor. Os objetivos mais amplos (formação de consciência crítica, desenvolvimento da criatividade, da capacidade de expressão, de atitudes de preservação e respeito ao ambiente; compreensão da organização do espaço; desenvolvimento do raciocínio lógico, dentre outros) são construídos a partir da combinação de aprendizagens alcançáveis num tempo menor mas que são fundamentais para que se atinjam as grandes metas.

CONTEÚDOS DE ENSINO

É com base nos conteúdos (conhecimentos, saberes) que se procura alcançar os objetivos. A escolha dos conteúdos que devem compor o plano, não é uma questão meramente técnica, já que no processo de seleção alguns conhecimentos são incluídos e outros são excluídos. Essa decisão se dá, com base em certas compreensões que se tem desses saberes e do seu papel na formação dos alunos. Não se pode, nesse sentido, esquecer o caráter de construção social próprio da seleção dos conteúdos programáticos de um plano de ensino. É necessária uma constante reflexão sobre os conteúdos a serem trabalhados, se quisermos realmente superar uma concepção de ensino baseada apenas na transmissão/reprodução de conhecimentos. Para isso torna-se imprescindível criar e ocupar espaços para que os conteúdos: – sejam instrumentos de compreensão e intervenção crítica na realidade, para isso precisam estar articulados com essa realidade; – superem a fragmentação e permitam uma visão de totalidade, através de uma perspectiva interdisciplinar; – sejam dinâmicos, atualizados e oportunizem o desenvolvimento o desenvolvimento das capacidades cognitivas, éticas, afetivas, atitudinais e psicomotoras do educando; – oportunizem a manifestação e o respeito à diversidade.

METODOLOGIA

A metodologia refere-se ao como desenvolver a ação pedagógica e só pode ser entendida articuladamente ao por quê e ao para quê dessa ação. Há uma grande expectativa de que a partir de mudanças na metodologia se possa conseguir resultados positivos na aprendizagem. Entretanto, uma mudança significativa demanda uma reflexão da prática pedagógica em sua totalidade, seus princípios e fundamentos. Uma mudança significativa não resultará de um acréscimo superficial e fragmentado de novas tecnologias e procedimentos de ensino. A metodologia é um recurso encaminhador de uma proposta pedagógica, neste sentido deve ser considerada em sua relação com os demais elementos que compõem a ação pedagógica, e não de forma autosuficiente. É nesse contexto que se inserem novas metodologias, procedimentos e tecnologias. A escolha dos encaminhamentos metodológicos não deve ser aleatória, desvinculada dos objetivos e dos conhecimentos que se pretenda trabalhar. Também não é uma escolha neutra, pois o modo como se conduz a ação pedagógica compromete-se com uma concepção de realidade e de educação; contribui com a formação de um determinado tipo de cidadão. Se a intenção do plano é superar uma concepção reprodutora/conservadora de ensino a metodologia deve respeitar os seguintes princípios: – compreensão da metodologia como parte de uma proposta pedagógica mais abrangente – relação professor-aluno dialógica – criação de espaço para a pergunta, a dúvida e a problematização – o aluno percebido como sujeito ativo de sua aprendizagem, alguém que constrói conhecimento (observa, relata, lê, resolve problemas, investiga, produz, cria, analisa, interpreta, tira conclusões, posiciona-se, experimenta, questiona, busca informações – ou seja, sai da posição de mero ouvinte) – relação teoria-prática – contextualização do objeto ou assunto em estudo – visão de totalidade – variação das situações de aprendizagem

AVALIAÇÃO

A avaliação tem sido usada como instrumento de poder, mecanismo ameaçador, disciplinador, punidor, gerando medo, tensão e inibição. Apesar do título avaliação, o processo esgota-se no ritual de aplicação, correção, entrega de testes e provas; reduz-se a função de atribuir notas tornando-se fator de seleção e exclusão; limita-se a ser classificatória e burocrática; rotula os alunos (os que sabem e os que não sabem, os que acertam e os que erram). A avaliação tem polarizado o processo de escolarização tornando-se um fim em si mesma, ou seja, tudo na instituição de ensino acaba girando em torno da avaliação, da nota e da preparação para processos seletivos: o que é importante, é importante porque cai na prova ou no vestibular; o que mais interessa ao aluno é saber como o professor vai avaliar, como será a prova; o importa é passar. A aprendizagem, o desenvolvimento do aluno, seu progresso em relação a níveis mais complexos de compreensão da realidade ficam em segundo plano. Com essas características a avaliação reduz-se a procedimentos que constatam problemas de aprendizagem, mas pouco ou nada fazem para solucionar tais problemas. Depois de realizada s as provas e entregues as notas, passa-se ao conteúdo seguinte sem que nenhuma providência seja tomada em relação às dificuldades que foram evidenciadas no instrumento de avaliação aplicado. Para que a avaliação deixe de ser um mecanismo de exclusão e de produção do fracasso escolar e possa contribuir para a inclusão, e a superação das dificuldades de aprendizagem diagnosticadas, é preciso ressignificá-la como parte de uma prática pedagógica. Mudanças significativas só ocorrem quando se repensa a postura pedagógica como um todo, mudar a avaliação isoladamente não leva a uma mudança consistente. Por exemplo: incluir outros instrumentos de avaliação como seminários, relatório sem repensar o seu papel dentro do processo de ensino aprendizagem tende a ser uma mudança superficial. É fundamental resgatar a essência da avaliação, isso significa torná-la um meio para o crescimento do aluno, identificando suas dificuldades, como primeiro passo para sua superação; torná-la contínua e diagnóstica, o que leva a uma tomada de decisões, ao redirecionamento da prática, à reflexão do fazer pedagógico, para a busca de resultados satisfatórios. Nesta perspectiva, o erro que o aluno comete deve servir para construir a superação e não para desqualificá-lo ou ridicularizá-lo. Os resultados da avaliação oferecem evidências sobre o encaminhamento do processo de ensino aprendizagem, são subsídios que devem implicar num redirecionamento da ação, num replanejamento da ação pedagógica. O que revelam esses resultados? Houve aprendizagens? Quais os erros mais incidentes? O que significam esses erros? Que decisão se deve tomar? Retomar os conhecimentos que não repercutiram em aprendizagens? Prosseguir independente do que informam os resultados da avaliação? São decisões que implicam em reflexão sobre a ação pedagógica, que envolvem planejamento. Resgatar o papel da avaliação como subsídio para a superação das dificuldades de aprendizagem implica ir além do papel que tem cumprido de limitar-se a uma função de classificação e seleção. Para tanto há que se considerar alguns aspectos como: – Estabelecimento de critérios para a avaliação e correção dos instrumentos de avaliação, evitando decisões arbitrárias, ou avaliação de aspectos irrelevantes. Neste sentido os objetivos são elementos norteadores (se quero desenvolver o raciocínio a capacidade de análise crítica, qual o sentido de perguntar aspectos irrelevantes só para “pegar” o aluno?); – Utilização de vários instrumentos e vários momentos de avaliação, coletando evidências da aprendizagem (ou das dificuldades de aprendizagem) em várias situações; – Oportunizar situações variadas para a recuperação da aprendizagem e superação das dificuldades identificadas; – Evitar utilizar a prova como recurso de punição e coerção do aluno. A avaliação, considerando os aspectos levantados, pode contribuir para o crescimento do aluno, deixando de se constituir num ato definitivo, estático e seletivo para se converter num processo de investigação para a construção de resultados positivos de aprendizagem. (Luckesi, 1995; Esteban, 1999) As reflexões acima pretenderam oferecer elementos para o professor repensar o planejamento passando a percebê-lo para além da formalidade do cumprimento de uma exigência burocrática, com potencialidade para se constituir num instrumento de aperfeiçoamento do ensino, para a superação de uma prática pedagógica engessada, repetitiva, descontextualizada, incapaz de responder aos desafios da contemporaneidade à educação, à formação dos cidadãos. Tomando por base os elementos sugeridos o planejamento (e seu resultado, o plano) pode ser um fator dinamizador da ação docente e contribuir para melhoria da qualidade de ensino, ao lado de outros fatores indispensáveis na busca dessa qualidade: valorização do trabalho docente e melhores condições de realização desse trabalho.

Bibliografia

ESTEBAN, Maria Teresa. A Avaliação no Cotidiano Escolar. In: ESTEBAN, Maria Teresa (org.) Avaliação: uma prática em busca de novos sentidos. Rio de Janeiro: DP&A, 1999. LIBÂNEO, José Carlos. Didática. São Paulo: Cortez, 1992. LUCKESI, Cipriano C. Avaliação da Aprendizagem Escolar. São Paulo: Cortez, 1995. LUCKESI, Cipriano C. Filosofia da Educação. São Paulo: Cortez, 1992. SACRISTÁN, Gimeno J. PÉREZ GOMES, A. I. Compreender e Transformar o Ensino. Porto Alegre: ArtMed, 1998. VEIGA, I. P. A. Repensando a Didática. Campinas, SP: Papirus, 1991 VEIGA, Ilma P. A.. Didática: O Ensino e Suas Relações. CAMPINAS, SP: Papirus, 1996 VASCONCELLOS, dos S. Planejamento: Plano de Ensino Aprendizagem e Projeto Educativo. São Paulo: Libertad, 1995 ZABALA, Antoni. A Prática Educativa Como Ensinar. Porto Alegre, RS: Artmed,1998.