Valores e conhecimento científico

Ainda se escuta bastante nos meios acadêmicos, a afirmação segundo a qual o conhecimento científico se caracteriza por seu rigor metodológico e pela objetividade dos resultados obtidos, características que, para serem alcançadas, dependeriam, entre outras coisas, do total afastamento dos valores. A atividade científica seria descritiva, e não valorativa. Cabe ao cientista dizer como as coisas são, e não propor como deveriam ser.

Com todo o respeito aos que pensam assim, gostaria de defender, aqui, uma posição diferente. Até porque a própria ideia de que é necessário afastar valores parte, ela própria, de um julgamento e, nessa condição, de um valor, sendo contraditória em si. Por outras palavras, a ideia de afastar a metafísica é, ela própria, metafísica.

Na verdade, o conhecimento científico, como tudo o que é feito conscientemente pelo ser humano, não tem como não ser guiado por valores. Por outro lado, o que o caracteriza é a abertura para a crítica. É ela que permite alguma objetividade nos resultados obtidos, além de continuamente retificá-los em direção a uma infinita aproximação da verdade.

De fato, mesmo que o papel do cientista seja descritivo, ou predominantemente descritivo, há a influência de valores quando alguém decide o que descrever. Afinal, por que estudar a estrutura das articulações humanas, em vez de iniciar um projeto para contar a quantidade de grãos de areia existente na Praia do Futuro? Porque, com o estudo das articulações humanas, é possível entender as moléstias e os traumas que as atingem, e prescrever formas ou tratamentos para restaurar a saúde de quem os sofre. Há nisso, evidentemente, julgamento e, como em todo julgamento, a influência de valores.

Aliás, o pesquisador geralmente inicia sua pesquisa a partir de um problema a ser resolvido. E, ao aproximar-se da realidade para resolver esse problema, já tem uma resposta para ele, cuja origem – v.g., intuição, senso comum, experiências prévias – não é tão relevante. O que importa é que essa resposta sobreviva às experiências, que são posteriores. As experiências podem ratificar a solução inicialmente pensada, ou retificá-la, levando à formulação de outra, em processo semelhante ao círculo hermenêutico gadameriano. As teorias científicas, portanto, antecedem as experiências, que apenas as confirmam (enquanto não são capazes de mostrar sua falsidade), ou refutam, levando à formulação de outras teorias ou à retificação das pré-existentes. Ela, a teoria, não é “desinteressadamente” encontrada depois da investigação. A teoria da relatividade é exemplo do que se está a dizer, pois foi moldada por Albert Einstein em face de intuições, reflexões e cálculos que só muito tempo depois puderam ser empiricamente postos a prova[1].

Quanto aos valores e à suposta incompatibilidade das ciências com eles, mesmo nas ciências naturais é equivocado pensar-se que estão ausentes, como se nota da narração feita no parágrafo anterior. A escolha do que será pesquisado – que implica a eleição de uma parcela da realidade em detrimento de todas as outras – é guiada por valores, e os motivos pelos quais ela será pesquisada também. Do contrário, haveria pesquisadores contando a quantidade de grãos de areia existentes em cada praia do litoral cearense, ou calculando a trajetória do milho ao transformar-se em pipoca dentro de uma panela de aço e procurando saber se haveria diferença em relação àquela feita em micro-ondas, ou se a marca da manteiga utilizada teria o condão de alterar essa trajetória. É evidente que se pesquisa para alguma coisa. Tenta-se descobrir o modo de reprodução de uma bactéria para tentar barrá-lo com o uso de medicamentos, a fim de tratar doenças que por ela sejam causadas, por exemplo. Procura-se entender o funcionamento do corpo humano para trata-lo, operá-lo, ou mesmo feri-lo de maneira mais eficiente. Os valores, em todos esses casos, estão presentes, não se podendo cogitar de mera descrição desinteressada: o interesse está não apenas em descrever, mas em para quê descrever e por que descrever isto e não aquilo.

Aliás, na própria determinação dos limites da parcela da realidade a ser “descrita” há julgamento e, nessa condição, a influência de valores, como têm mostrado os que se dedicam ao pensamento complexo e à teoria da complexidade. A realidade não possui divisões estanques, sendo, em verdade, gradual a separação entre as partes que a integram. A simplificação é feita pela mente humana para compreendê-la, simplificação que será tanto maior quanto menos necessário for o aprofundamento nas sutilezas[2]. Perguntas simples o demonstram, como esta: onde está o limite que permite identificar onde começa o corpo de um indivíduo, separando-o do ambiente onde ele está inserido? O que dizer, nesse contexto, das unhas cortadas? De um pouco de sangue perdido em ferimento? E a comida ingerida minutos atrás? O ar inspirado e expirado? Caso a análise se dê não apenas no instante presente, mas no tempo, o indivíduo que hoje se acha na maturidade é a mesma criança de 50 anos atrás? Mesmo que os átomos que o compõem hoje sejam outros, assim como os pensamentos que carrega?[3] Tais questões mostram que nem mesmo a “mera descrição” de “quem é João” é simples e dispensa o recurso aos valores. Dependendo da finalidade para a qual se estiver precisando da descrição, alguns desses detalhes podem ser relevados ou ignorados, recorrendo-se a aproximações decorrentes de a minúcia ser, para o fim específico da descrição, absolutamente desnecessária.

O mesmo se dá com as distâncias. Qual a distância entre São Paulo e Fortaleza? É um número exato? A exatidão, no caso, é buscada somente até onde isso é considerado necessário, em um trade off entre precisão e praticidade. Se alguém deseja saber o tempo de viagem de avião, uma estimativa aproximada em quilômetros será suficiente, ainda que com “arredondamentos” que sacrifiquem algumas dezenas deles. Caso a finalidade seja projetar uma estrada, e calcular a quantidade de asfalto, uma precisão maior pode ser exigida. Ainda no âmbito do cálculo das extensões, se se trata de calcular a altura de um bebê para acompanhamento de seu crescimento, ou a espessura de um vidro para a construção de um móvel, precisão consideravelmente maior será necessária[4].

Tais exemplos mostram, por outro ângulo e de outra forma, o quão equivocada é a ideia de que alguém pode “apenas descrever” a realidade, seja ela empírica, social ou cultural. A complexidade desta faz com que a mente humana a simplifique para melhor compreensão, reduzindo ou aumentando essa simplificação conforme a necessidade. Isso envolve, por igual, decisão e valoração. E o curioso é que tais fatos foram mais evidentemente percebidos quando se tratou de “ensinar” máquinas, no âmbito da inteligência artificial, setor que importantes contribuições têm dado à neurociência contemporânea[5].

Em verdade, a maneira factível de fazer com que preferências pessoais e características subjetivas influenciem o menos possível a retidão dos estudos e das afirmações que se fazem a respeito da realidade não é eliminando os valores, ou exigindo que o pesquisador seja neutro, ou “apenas descreva”, o que lhe é impossível. Ele deve tentar fazer com que elementos subjetivos influenciem o mínimo possível sua pesquisa, dentro do que lhe for possível controlar[6], mas uma maior objetividade se consegue, na verdade, caso se mantenha a abertura do conhecimento à crítica, de sorte a que outras pessoas, que eventualmente alimentam outros valores e têm outras pré-compreensões, possam criticar as afirmações feitas pela primeira. Esse processo “depura” a ciência[7].

 


[1] O mesmo talvez possa ser dito de Freud, tendo a psicanálise por muito tempo sido considerada “não-científica” (pelo próprio Popper), porque impossível de refutação ou falseamento. Essa impossibilidade, porém, decorria da inexistência de meios à época. Com os avanços da neurociência, no início do Século XXI, algumas das afirmações freudianas estão sendo ratificadas, e, outras, retificadas.

[2] Cf., v.g., SHAPIRO, Stewart. Vagueness in context. Oxford: Claredon Press, 2006, p. 196 e ss.

[3] DEEMTER, Kees Van. Not exactly: In praise of vagueness. Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 56.

[4] DEEMTER, Kees Van. Not exactly: In praise of vagueness. Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 81. Com o propósito de “simplificar” a realidade para então “meramente descrevê-la”, o pesquisador despreza certas parcelas dela realidade, em detrimento de outras, atividade que envolve, como é claro, nítido julgamento, guiado por valores. Veja-se: MORIN, Edgar. Introducción al pensamiento complejo. Barcelona: Gedisa, 1998, p. 28.

[5] Afinal, para lidar com a cognição de uma máquina, é preciso entender como se processa a humana. As evidentíssimas limitações surgidas da aplicação às máquinas das ideias simplistas que se defendiam, até o final do século passado, no âmbito da hermenêutica e da epistemologia, bem demonstram a inadequação de tais ideias, que tampouco correspondem, de fato, a como a mente funciona. Cf. PINKER, Steven. Como a mente funciona. 3.ed. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 23-26. Confiram-se, ainda: DEEMTER, Kees Van. Not exactly: In praise of vagueness. Oxford: Oxford University Press, 2010; CHRISTIAN, Brian. O humano mais humano. O que a inteligência artificial nos ensina sobre a vida. Tradução de Laura Teixeira Mota. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

[6] HAACK, Susan. Defending scince – within reason: between scientism and cynism. New York: Prometheus Books, 2007, p. 173.

[7] POPPER, Karl. A lógica das ciências sociais. Tradução de Estévão de Rezende Martins. 3.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004, p. 28.

 

prof_hugo-segundo_curso-direito-h150Hugo de Brito Machado Segundo

Professor da Faculdade de Direito da UFC
hugo.segundo@ufc.br