EXPLICAR OU COMPREENDER?

A sala de aula entre o princípio de hierarquia e a busca por igualdade

leonardo de chapeu-h150Leonardo Sá 

Este texto foi apresentado na palestra dos Seminários Pedagógicos da CASa em junho de 2013, para assistir disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=yRf9IHYGMwo

 

Educadores e educadoras também podem ser professores e professoras, mas nem sempre professores e professoras são educadores e educadoras. Um professor pode ser correto, competente, compromissado, esforçado, trabalhador, estudioso e não ser um bom educador. Pode ser um bom explicador, mas explicar não é educar, apesar de que explicações são imprescindíveis aos processos educacionais. Este paradoxo é o que motiva minha fala na perspectiva dos Seminários Pedagógicos do Projeto Casa. E para adentrar em qualquer casa, mesmo que seja a sua própria casa, é pedindo licença aos sujeitos de fala que a compõem que, primeiramente, indexamos o lugar imaginado da fala, ou seja, para assumir o lugar próprio de fala, isto está em função do compromisso de uma casa que funciona como espaço público, como lugar de compromissos.

A rigor, ninguém é educador no sentido forte do termo, uma vez que a educação é um devir, o educador não é uma condição garantida desde sempre, não é algo dado. É um processo, uma prática, não é dada numa suposta realidade do sistema de ensino (seja ele qual for). E não é um diploma que garante a efetiva atualização da prática de ensino e aprendizagem. Diplomas são certificações para o sistema de repartição de cargos na estrutura ocupacional moderna. A condição do educador, por sua vez, é a condição marcada por uma busca do próprio sentido do que seja a educação. E o sentido da educação passa tanto pela questão da reprodução da ordem social, com suas desigualdades de oportunidades de poder, como pela questão da liberdade sem a qual não há pensamento humano, nem agir politicamente livre numa comunidade de compromissos (e uma comunidade de compromissos não é um lugar de consensos, mas de uma dialética entre dissensos e consensos, ordem e desordem).

A educação, portanto, é uma questão eminentemente política. A sala de aula, neste sentido, também o é. Há uma “educação” para a violência de uma ordem, uma domesticação para a ordem. Uma educação aprisionada pelos propósitos da ordem social e seus aguilhões: como no caso dos treinamentos monitorados e avaliados sistematicamente por meio da distribuição de diplomas legais que fazem a gestão de espaços coletivos, o espaço coletivo do exercício das profissões, por exemplo, a que já me referi. Mas há também uma educação para a liberdade, uma educação para a busca de autonomia relativa frente aos engessamentos da ordem social. Uma educação para a emancipação de educandos e educadores. E não se trata de alimentar a oposição entre educação humanista e educação tecnológica, profissional e técnica, essa oposição é falsa, como dizia Paulo Freire. Aliás, foi a ele a quem me referi quando usei a expressão educação como prática para a liberdade, que é o título de um de seus mais instigantes livros. Não se trata de denunciar a contradição entre a técnica e o humano, nem de apor o humano à técnica. Não se trata nem de humanismo para temperar o sistema da crueldade que caracteriza o regime do treinamento para um mundo onde se perdeu a experiência do trabalho enquanto vocação, experiência do ascetismo religioso que se torna ascetismo secular, e onde reina a forma reificada do trabalho, que é o puro labor, com todas as implicações do ponto de vista das incertezas, inseguranças e instabilidades que caracterizam sociologicamente os novos arranjos sociais produtivos no capitalismo contemporâneo.

Diga-se de passagem a guisa de contextualização que esse capitalismo tornou-se um tipo de socialidade onde os mecanismos de oferta de crédito e de controle do endividamento das pessoas e das famílias, juntamente com o desenvolvimento de uma sociedade do controle, baseada na produção de sujeitos atrelados a dispositivos tecnológicos diversos, pode ser entendida sob o signo de uma profunda dessubjetivação da vida social.

Desde 1950, o informacionalismo, a economia da informação, o capitalismo contemporâneo e mais especificamente a partir da crise de 1970 que dá surgimento a novas formas de governamentalização da vida social, centradas na produção de sujeitos, na produção social do desejo, que novos controles são proliferados enquanto formas anteriores de controle social, como os direitos protetivos, garantidos por uma ordem constitucional estatal de bem-estar e serviço público entram em declínio (sendo isso válido apenas para os países desenvolvidos que entre 1950 e 1970 vivenciaram um período de conforto material e garantias de direitos sociais básicos como nunca antes na história moderna).

Mas não é desse contexto amplo que vou tratar nesta fala, neste texto que é uma escrita em voz alta, como diria Barthes, isso foi só para lembrar-nos da possibilidade de conexão entre o contexto da sala de aula e da relação deste contexto com o universo mais amplo de questões vivenciadas pelas populações do planeta em escala global. Ocorre que o contexto global não pode ser apenas tratado como algo dado, como algo que é pressuposto. É preciso que pensemos os desafios da vida mundializada a partir das interações que realizam isso a que chamamos sala de aula a partir de nossas práticas cotidianas docentes e discentes.

Voltando então para o começo, pois fazer arrodeios e desvios é uma característica do pensamento humano, estava falando que professor não é necessariamente um educador, mas não fiz o adendo de que, no sentido ético, crítico e reflexivo, ele ou ela deveria ser, deveria assumir o desafio e o compromisso de devir educador, ou seja, menos como um dever e mais como um vir a ser.

O educador contra o professor, este poderia ser outra maneira de dizer o tema da fala deste texto, explicitando o conflito entre explicar e emancipar na perspectiva da prática docente. É preciso uma luta entre o educador e o professor, uma luta pelo sentido da ação pedagógica em sala de aula ou em outros ambientes pedagógicos. Nessa luta, a figura do professor assume o lugar da autoridade que explica. De uma autoridade que detém saberes e títulos. E o educador parte do lugar nenhum para afirmar que nenhum lugar é passível de se afirmar como o lugar próprio e iminente da verdade, da competência para dizer o que é adequado e o que não é adequado em termo de conhecimento. O educador alimenta, ao contrário do professor, uma consciência reflexiva e crítica própria, voltada para si, para suas próprias limitações, uma consciência da profunda insuficiência das ferramentas de conhecimento de que dispomos para realizar alguma aproximação minimamente significativa daquilo que pretendemos. E não se trata apenas de aquisição de conhecimentos, pois apenas adquirir conhecimentos não é suficiente para o tipo de esforço que o educador precisa realizar sobre si a favor de educandos e educandas. Não é na afirmação de si mesmo enquanto potência do saber, potência do saber do professor, enquanto instância de explicação dos fenômenos sejam eles quais forem, onde reside o núcleo da educação.

Inspirado em Barthes (1977), como educador, como figura de educador, gostaria de adotar a perspectiva de um sujeito incerto e impuro, o que não quer dizer que incerteza e pureza sejam atributos do sujeito, talvez fosse melhor dizer que são atributos de relações. Neste sentido, seria mais adequado falar do lugar de um sujeito que emerge da incerteza e das impurezas que caracterizam as relações sociais. Há, portanto, condicionando do lugar a partir do qual se fala. Há uma série de eventos de natureza política, econômica, cultural e social que fazem de um lugar, um lugar de pertencimentos sociais, um lugar de exercício do poder. E se as relações sociais são misturadas, impuras, abertas à polifonia, à cacofonia, à gagueira e à exposição ao mundo dos clichês e dos socioletos, por que, logo nós, nós que trabalhamos com imagens, conceitos, ideias, esquemas e todo tipo de material analítico, expressivo ou linguageiro, poderíamos nos considerar imunes à contaminação de nossas práticas pelos significados dados por tais esquemas perceptivos preexistentes à nossa inserção como professores? Não estamos imunes ao mundo dos preconceitos e deformações da vida social. O autojuízo reflexivo é uma tarefa permanente, por conseguinte.

Se a educação em um sentido é garantidora do funcionamento do mundo social, ao produzir subjetivamente indivíduos competentes e habilidosos para exercerem funções, papéis e atuarem como agentes produtivos e reprodutivos de um ordenamento dado, essas competências e habilidades estão subordinadas a um processo de aceitação dos padrões normais, incluindo os padrões de valorações que tornam atrativas as adesões sociais ao mundo das profissões, o que pressupõe a promoção de modo implícito ou explícito de estilos de existência que reflitam regimes de verdade e de normalidade requeridas para o bom funcionamento das coisas. Ou seja, desejamos que os egressos de nossas salas de aula sejam em alguma medida um resultado de sucesso, tanto profissional, quanto cidadão, quanto social. E essa noção de sucesso com a qual estamos a nos projetar sem cessar e quase sempre de modo inconsciente em nossos alunos opera em geral com o que há de pior em nós, enquanto profissionais da educação, que são as nossas frustrações latentes, nossos centros de impotência, o que muitas vezes expressamos também de modo quase inconsciente no modo como exercitamos desejos perversos de que nossos alunos nos superem, mas ao mesmo tempo não nos superem. Uma torcida esquizofrênica que se orgulha pelo aluno que brilha (formado por nós, olha aí! Como é bom! Como é brilhante!) e também ao mesmo tempo agora, sem distinções de nível, por isso é esquizofrenia, no sentido da entidade clínica suposta que não metaforiza as linhas de fuga, mas isso é outra discussão, o que é importante relatar do sintoma dessa torcida esquizofrênica onde ocupamos posições de líderes de equipe, juízes, árbitros e igualmente jogadores, por vezes, nós fazemos dos nossos melhores alunos uma imagem odiosa dos nossos piores competidores, com a vantagem, e é aí onde entra o desejo perverso, de que nós somos os melhores, pois somos os professores, afinal. Há relações de poder incrustadas de modo permanente no nosso fazer pedagógico. Que essas relações não se cristalizem em formas de dominação, isso é um grande desafio.

Neste sentido, alguém convidado a assumir o lugar de tagarela como estou fazendo agora, nesta fala que é um texto, é alguém que assume uma atividade de risco. Eu que cá estou no aqui e agora a ocupá-lo (o lugar de fala que é de risco) e a desempenhá-lo (o papel de tagarela que é quase sempre inconveniente e presunçoso), sinto-me enredado numa tarefa demasiadamente perigosa. Isso em três sentidos diferentes. Primeiramente, é preciso lembrar que a função do sujeito de fala, como de um sujeito de desejo, é uma função derivada, é algo que emerge a partir de baixo, e quase sempre diz respeito às dimensões discursivas e não discursivas das práticas de sentido que nos produzem enquanto sujeitos de desejo. Em segundo lugar, há uma dimensão de controle da dispersão daquele que fala por parte de quem o ouve que faz do lugar do público o único lugar capaz de atribuir valor, positivo ou negativo, àquilo que se fala. E, um terceiro sentido, que diz respeito à tarefa principal da minha fala hoje que como toda fala de educador entre educadores é uma fala que oscila entre dizer para alguém (explicar) e dizer algo sobre como alguém é capaz de se dizer e de se construir enquanto desafio de si, enquanto capacidade de dizer algo, que é dizer algo com alguém buscando a partir da dessubjetivação do lugar de quem fala em favor do lugar de quem escuta, a fim de que este lugar da escuta seja o lugar por excelência do pensamento crítico e reflexivo, e, consequentemente, o lugar da fala de um sujeito, a saber, se aceitarmos como ponto de partida a ideia de que a educação relaciona-se com a produção social de sujeitos de desejo, enquanto sujeitos de ação, de conhecimento e de pensamento confrontados às heteronomias, ao campo do poder, que são operadores sociológicos de representação do outro e que funcionam como atos de nomeação vindos de fora, vindo dos outros, projetando-se em nós e fazendo de nós o mesmo que o outro diz de si ao se projetar em nós. Os processos de estereotipagem estão entre os mais famosos desses mecanismos, mas os há em profusão na vida social e de várias naturezas. Para finalizar, passo a seguir a uma imagem de Universidade que me vem à mente, quando penso no tipo de comunidade “problemática” que somos, o que envolve nossa intricada relação entre ensino, pesquisa e extensão.

A Universidade é um dos poucos lugares no mundo onde o sucesso é não acreditar no sucesso, sucesso é desconfiar profundamente de fórmulas e receitas de sucesso. O sucesso atrapalha, pois nos faz perder a noção de que o caminho (método) em busca da verdade é de tentativas e erros em sentido constante de aproximações e distanciamentos. O valor próprio à Universidade é o valor ligado ao princípio de incerteza e de perplexidade curiosa, liga-se à dúvida científica e à busca pela verdade científica. E essa busca só pode se realizar de modo adequado, respeitando as dinâmicas dialógicas de acordos e desacordos no interior da comunidade científica internacional, pois a Universidade é um lugar transnacional, em qualquer parte do mundo, e a adequação e a inadequação do que quer que seja, na Universidade, precisa passar pelo crivo crítico da comunidade de cientistas, pelo debate, pela argumentação intersubjetiva e pela aceitação da pluralidade conflitual em termos teóricos, epistêmicos, metodológicos e técnicos. Quem não aceita a pluralidade de abordagens científicas, não consegue entender o solo da Universidade. É preciso desenvolver o gosto moral pelo dissenso.

A consciência reflexiva e crítica e a busca pela certeza verdadeira (que do ponto de vista da ciência envolve noções como provisoriedade, aproximação, verificação, falseabilidade, simulação, experimentação, construção de fatos científicos válidos, superação de certezas não científicas na elaboração da certeza científica etc.), ou seja, é a partir de uma verdadeira consciência aguda das insuficiências e inadequações das ferramentas disponíveis de saber e de uma crítica das condições e dos limites de qualquer forma de recognição que oblitera a busca pela significação e pela verdade os modos da cognição humana nos seus compromissos com o real, é essa consciência da insuficiência dos métodos, das técnicas e das ferramentas conceituais atuais que é o motor da Universidade (num sentido conceitual e também das práticas que a produzem).

A Universidade, ao contrário de outras “empresas”, não busca o sucesso social, nem o sucesso monetário e muito menos político por meio de suas ações de conhecimento. É o espaço político onde a ética do conhecimento impera sem aceitar ingerências de moralidades públicas que rezam pela cartilha dos interesses sociais e dos benefícios sociais (ou seja, do poder social, econômico e político). O que não quer dizer que não haja fronteiras tênues e tensas com outros segmentos do espaço social e que a Universidade não seja atravessada por disputas em torno de intervenções promovidas por tais forças externas, e que a Universidade existe fora do mundo social.

Mas na Universidade não temos tempo a perder com celebrações do acerto, pois este leva à acomodação e à paralisação do movimento heurístico de busca de entendimentos e desentendimentos mais adequados sobre o funcionamento das realidades estudadas, é a inquietude metodologicamente reflexiva e crítica em torno do erro que define o núcleo da experiência de busca na Universidade. É a errância da aventura humana como estruturação das experiências de construção de modelos científicos das múltiplas realidades que interessa à Universidade, sobretudo, quando as forças da autoridade atuam querendo frear avanços da intelecção humana. Como dizia Da Vinci, quem rejeita a Razão, adota a memória como critério de ação, e esta é a forma por excelência da imposição da Autoridade, do não questionável, a Universidade não vive da memória social de seu sucesso, vive da insatisfação permanente com seu “atraso” de conhecimento. É preciso correr atrás para superar as defasagens e desconfiar até mesmo da noção de progresso científico.