A importância da crítica e a aversão ao dogmatismo na formação do conhecimento científico

O acesso de qualquer sujeito cognoscente à realidade é sempre a apenas parte dela, que em sua totalidade é bem maior e mais complexa do que capacidade de compreensão humana. Por isso, é natural que suas impressões sejam imperfeitas e provisórias, passíveis de aperfeiçoamentos decorrentes de novos exames e novas análises daquela mesma realidade. Esses novos exames e análises podem ser feitos por ele próprio, ou por outros sujeitos, que com ele integram a comunidade dos que se ocupam do estudo daquela realidade. É despiciendo ressaltar, nesse contexto, a importância da abertura das teorias e o caráter extremamente saudável da crítica.

Assim, alguém que estuda as ideias de outra pessoa e com elas manifesta discordância não poderia dar maior manifestação de respeito acadêmico. Mostra que procurou conhecer as ideias do outro, e refletir sobre elas. Mas não só: revela que tais ideias precisam ser criticadas, seja porque quem as defende tem autoridade bastante para fazer com que prevaleçam de maneira não suficientemente refletida pelos demais, seja porque parecem realmente corretas. É preciso respeitar o interlocutor para ter o desejo de tirar-lhe do que se considera ser um erro. Não que, por isso, toda crítica deva ser acatada. Evidentemente que não. Mas ela deve ser bem vinda, pois, na pior das hipóteses, servirá para confirmar – por não ter conseguido falsear – a ideia até então tida como verdadeira; como aquela contestação na qual o réu, sem o querer, termina por reforçar, no julgador, a certeza de que o autor da demanda é quem tem razão.

Tais aspectos, insista-se, não deveriam precisar ser aqui lembrados. Mas é necessário que o sejam, notadamente no âmbito jurídico, e jurídico tributário, no qual a crítica ou a discordância por vezes é tomada como uma declaração de guerra e motivo para eterna inimizade. Paradoxal que pessoas que pretendem fazer ciência – e o repetem a todo instante em seus textos – ajam assim. Mas, se serve de consolo, pelo menos se sabe que essa característica não é exclusiva dos que estudam o Direito, ligando-se, talvez, à forma como o cérebro trata suas crenças em geral[1], que faz com que críticas nem sempre sejam bem digeridas. São raros os que, como Lakatos e Feyerabend[2], divergem frontalmente no plano das ideias, mas chegam a ser amigos no âmbito pessoal. Talvez por isso Kuhn se reporte ao progresso da ciência, no plano ôntico, como ocorrendo não paulatinamente, mas aos saltos, por meio de revoluções motivadas por quebras de paradigma[3], e Bachelard refira-se ao caráter conservador do pesquisador na maturidade, mais preocupado em manter a todo custo suas ideias do que em eventualmente rediscuti-las[4].


[1] SHERMER, Michael. Cérebro e crença. Tradução de Eliana Rocha. São Paulo: JSN, 2012, passim.

[2] Veja-se, a propósito, o relato feito pelo próprio Feyerabend no prefácio de “Contra o Método”, livro escrito por provocação de Imre Lakatos, de quem discordava diametralmente em muitos pontos. Lakatos pediu a Feyerabend que publicasse seus “pensamentos estranhos”, para que os pudesse rebater também por escrito, e, com isso, ambos poderiam “se divertir bastante”. Cf. FEYERABEND, Paul. Contra o método. 2.ed. Tradução de Cezar Augusto Mortari. São Paulo: Unesp, 2011, p. 7 a 9

[3] KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. 9.ed. São Paulo: Perspectiva, 2005, passim

[4] BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p. 19.

prof_hugo-segundo_curso-direito-h150Hugo de Brito Machado Segundo

Professor da Faculdade de Direito da UFC
hugo.segundo@ufc.br