mondovinoMondovino e a Disputa do Gosto

O Professor Sérgio Rebouças fala um pouco sobre o documentário Mondovino:

“Recomendo a todos o excelente documentário Mondovino, de Jonathan Nossiter.

Por diversos entremeios principalmente na França, na Itália e nos Estados Unidos, mostram-se os conflitos entre tradição e modernidade no mundo do vinho, em especial o efeito globalizador patrocinado por grandes empresas norte-americanas (representadas pela famosa californiana Mondavi) no “Velho Mundo”.

Mondovino elucida, por métodos e efeitos notáveis, uma questão muito corrente da contemporaneidade: a manipulação e a padronização do gosto. De forma sutil, o diretor conduz as divergências em torno do complexo mercado do vinho, dando voz a todos os lados.

O ponto mais marcante, para mim, é como a estandardização do sabor resulta imposta por poucos enólogos e críticos – concentrados nas figuras de Michel Rolland e Robert Parker –, à custa de terroirs manipulados para atender aos modelos do vinho “fácil de beber”. O vinho então vai ficando cada vez mais uniforme, seja produzido no terroir de Bordeaux, seja no da Toscana, seja no do Napa Valley californiano (com suas “corretoras” barricas de carvalho).

O bordalês Michel Rolland, em particular, o enólogo mais influente do mundo, presta consultoria a produtores de 12 países, nos quais realiza suas adaptações de “micro-oxigenação”, homogeneizando o vinho em função de um modelo de gosto que o torne mais vendável – e o faz com surpreendente eficiência. Do seu amigo mais famoso, o crítico Robert Parker, então, nem se fala; os preços dos vinhos dependem dele.

Em nome disso é que se deram as associações, reveladas no documentário, entre tradicionais famílias aristocráticas – Mouton-Rothschild, por exemplo – e as potências norte-americanas, como a Mondavi.

Destaco ao leitor interessado alguns momentos especiais:

1. A “discussão” à distância, potencializada pela edição do filme, entre o enólogo Michel Rolland e o irônico Aimé Guibert, produtor enciumado do Languedoc-Roussillon (França), onde o pequeno vilarejo de Aniane resistiu e impediu a penetração do grupo Mondavi, chegando para tanto ao “cúmulo” de eleger um prefeito comunista. Trechos desse “diálogo”:

Rolland: – É preciso micro-oxigenar. O objetivo é muito simples. Fazer cada vez melhor. Não há nenhuma dúvida. Se não der para melhorar, é melhor não fazer nada. 

Diretor: – Mas nem todos concordam sobre como fazer bem um vinho. 

Rolland: – Claro, a diversidade é isso. É por isso, aliás, que há tantos vinhos ruins… (risos)

[...]

Guibert: Há uma relação quase religiosa do homem com os elementos naturais. Com a terra, claro, viva, sem moléculas sintéticas. E com o clima. Estamos diante de algo que parece com o culto ao dinheiro. Um grande vinho é a soma de muito amor e de muita humildade. Um elo profundo com a terra, o tempo, o clima. Fazer vinho é ofício de poetas. Os poetas foram agora substituídos por enólogos. Sedutores e sorridentes. Como M. Rolland. É fascinante. Ele chega em uma conferência e diz: ‘É possível fazer um grande vinho em qualquer lugar do mundo. Basta… consultar M. Rolland!”.

2. É interessante o comentário do aristocrata e diretor de vinhos da Christie’s britânica acerca dos métodos de Rolland. Um vinho de Margaux – denominação de origem do âmbito de Bordeaux – não estava vendendo bem, mas, após a contratação de Rolland, foram feitas adaptações que, adequando o produto ao gosto padrão, movimentaram o mercado; a contrapartida disso é que o vinho deixou de ser um Margaux, vale dizer, perdeu sua identidade, em larga medida.

3. As fraudes relatadas são assustadoras. Como exemplo, tem-se o mesmo vinho engarrafado com rótulos diferentes em uma grande propriedade (a terceira da França em vendas) da Bourgogne. Trata-se de produtores que adulteram vinhos, que não correspondem ao que está dito no rótulo, para agradar ao gosto de Robert Parker e assim se inserirem no famoso “Parker’s Guide”. Esses vinhos, caros leitores enófilos, chegam até nós.

4. As reflexões do produtor borgonhês de Volnay, Hubert de Montille (a foto na capa do documentário é dele), estão entre os grandes momentos da produção.

Bem, acabei não resistindo a escrever muito. Recomendo o documentário não apenas para os entusiastas do vinho – em especial aos preocupados com as notas da Wine Spectator e de Robert Parker –, mas a todos que entendem que as reduções mercadológicas impostas à arte (porque isso acontece na música, na literatura, no cinema, na pintura etc.) devem ser pensadas para além da ideia simplória da oposição ao “progresso tecnológico”; porque modernidade e tradição podem conviver, mas havemos que nos livrar da estupidez, do reducionismo intelectual e do mau gosto, ou do império de um gosto único, que anule a nossa capacidade de escolha.”