Mobilizando o legado da contaminação ambiental

Metais são contaminantes ambientais presentes em vários tipos de efluentes de origem industrial, urbana e da agropecuária. Ocorrem naturalmente na atmosfera, nos solos, nas águas e na biota e podem ser uma ameaça potencial às populações humanas através do consumo de meios contaminados. Durante a maior parte do século passado, o controle da emissão de metais por atividades humanas foi pouco eficiente, resultando em emissões superiores àquelas de origem natural. Assim, mesmo depois da implantação de legislações ambientais rígidas, como a Brasileira por exemplo, quantidades elevadas de metais permanecem depositadas em ecossistemas, constituindo uma herança da irresponsabilidade com o meio ambiente típica daquele período.

            Os estuários e regiões costeiras possuem características naturais que facilitam a acumulação de contaminantes sendo as áreas mais afetadas por este descaso com o meio ambiente. Estas características também promovem alterações na química dos metais, o que pode aumentar sua mobilidade em águas e sedimentos e a capacidade de incorporação por organismos (biodisponibilidade). Quando um rio chega ao litoral, a diminuição da diferença de altitude da planície fluvial em relação ao nível do mar resulta na diminuição da capacidade de transporte da corrente, permitindo a deposição de partículas em suspensão. Essas partículas ao sedimentarem incorporam em sua superfície íons e moléculas dissolvidos nas águas, proporcionado sua acumulação em sedimentos de fundo. Simultaneamente, as águas levemente ácidas dos rios se misturam com as águas alcalinas do mar. Essa mudança na acidez altera o equilíbrio químico das substâncias presentes na água, diminuindo sua solubilidade, facilitando sua ligação às superfícies de partículas em suspensão ou precipitando-as na forma de minerais. Esses mecanismos fazem com que estuários e deltas atuem como filtros ao transporte de materiais de origem continental, diminuindo ou mesmo impedindo sua transferência para o oceano profundo.

            Nos estuários, as camadas de sedimentos são rapidamente cobertas e enterradas por novas partículas recém transportadas, preservando o material depositado como por exemplo, substâncias químicas e matéria orgânica terrestre. Atualmente, essa sedimentação é um dos grandes sequestradores de carbono do planeta e, portanto, forte aliado no combate ao aquecimento global. Iremos discutir este assunto em outro Blog, entretanto. Os sedimentos das margens dos rios, das ilhas fluviais e dos bancos semissubmersos ao longo dos estuários são rapidamente colonizados por vegetação típica, no nosso litoral tropical as florestas de manguezal. A colonização por plantas ajuda a aumentar a capacidade de retenção de sedimentos, pois atua como barreira física e contribui para aumentar a concentração de material orgânico nos depósitos sedimentares. Dentro do sedimento, todo o oxigênio é consumido pela atividade microbiológica e tem sua renovação dificultada pela baixa porosidade dos sedimentos de grãos muito finos (principalmente, argilas) e da compactação, fazendo com que o oxigênio da água ou do ar penetre apenas nos poucos milímetros na coluna de sedimento. Logo abaixo da superfície do sedimento, portanto, domina o ambiente sem oxigênio livre, no qual bactérias anaeróbicas são capazes de respirar na ausência desse elemento químico, utilizando como fonte de energia química os íons sulfato, abundantes na água do mar. A energia liberada nessa respiração, entretanto, deixa não é suficiente para decompor a maior parte da matéria orgânica depositada nos sedimentos que é bem mais refratária a esse processo. Daí a acumulação progressiva de grandes quantidades de carbono. A reação de respiração das bactérias também libera íons sulfetos pela redução do sulfato presente na água do mar. Estes íons sulfeto se associam aos metais presentes no sedimento e formam sulfetos metálicos insolúveis. Esses sulfetos são principalmente de ferro (as piritas), metal mais abundante nos sedimentos. No entanto, os sulfetos também co-precipitam vários metais tóxicos, como mercúrio, cádmio, zinco e cobre, poluentes ambientais vindos em sua maioria do continente. Essas piritas, muito estáveis na ausência de oxigênio, vão se acumulando nas espessas camadas de sedimentos ricos em matéria orgânica. A falta de oxigênio das camadas de sedimentos favorece a estabilidade dos cristais de pirita, o que diminui drasticamente a liberação dos metais tóxicos para o meio, impedindo que sejam incorporados pela biota. Ao longo do tempo, grandes quantidades de metais podem ser estocadas nos sedimentos por este processo, diminuindo a exposição a estes perigosos contaminantes.

            Infelizmente, atividades humanas realizadas nos estuários e deltas, aliadas a mudanças climáticas globais e nos usos dos solos nas bacias de drenagem, podem resultar na exposição dessas camadas de sedimentos ao oxigênio. Isso se dá por meio da erosão e dragagem, bem como do desmatamento de manguezais e outros tipos de vegetação. Essas interferências podem levar à dissolução das piritas presentes no sedimento e na liberação de grandes quantidades de metais imobilizados nas camadas do sedimento. A preocupação com a ‘ressurreição’ desses metais tem sido o foco de estudos para caracterizar as associações desses elementos tóxicos, bem como a exportação deles para águas superficiais, quando ocorrem alterações do ambiente estuarino, como por exemplo aquelas observadas em áreas de manguezais do rio Jaguaribe, no litoral do Ceará. Uma vez liberados, os metais (tóxicos ou não) poderão se ligar ao material orgânico dissolvido nos sedimentos, aumentando não só sua mobilidade, mas também sua biodisponibilidade. Por exemplo, em um sedimento sem oxigênio típico dos manguezais, não é detectada a presença de mercúrio dissolvido na água do interior das camadas do sedimento. Porém, quando esses sedimentos são banhados por águas ricas em oxigênio, cerca de 70% desse metal são dissolvidos e transferidos para a água, aumentando a probabilidade de chegarem à flora e à fauna aquáticas.

            Em vários estuários no mundo, aumentos na concentração dissolvida e biodisponível de metais tóxicos, como o mercúrio e o cádmio, vêm sendo observados, mesmo em regiões isentas de contaminação ou naquelas em que a atividade humana vem diminuindo sistematicamente. Os estuários do litoral semiárido do Brasil parecem ser um desses exemplos. Degradados ou não, diferentes resultados preliminares obtidos no litoral do Ceará apontam aumentos na concentração dissolvida de metais em áreas sujeitas a erosão, mesmo na ausência de poluentes de origem humana. Também foram observadas concentrações relativamente elevadas em organismos estuarinos. Por exemplo, peixes que ocorrem ao longo de todo o gradiente estuarino, apresentam concentrações mais elevadas de mercúrio no extremo estuarino em relação as mesmas espécies coletadas no extremo fluvial. Consequentemente, quando estimamos o reisco das populações humanas à exposição a este contaminante, também aquelas populações ribeirinha no extremo estuarino apresentam risco maior que aquelas habitantes do extremo fluvial. O entendimento dos processos biológicos, geológicos e químicos envolvidos na remoção desses poluentes será fundamental para o entendimento da contaminação ambiental não só em áreas degradadas, mas também em ecossistemas hoje livres de problemas de poluição.

Sugestões para leitura:

Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Transferência de Materiais

Continente-Oceano: www.inct-tmcocean.com.br

Revista Virtual de Química (SBQ): Mudanças climáticas e remobilização de poluentes http://www.uff.br/RVQ/index.php/rvq/article/view/283/250

Ecologia Teórica (UFC): O Paradoxo Ártico

http://www.inct-tmcocean.com.br/pdfs/Salomons/06_Ecologia_Teorica.pdf

Atlas dos Manguezais do Nordeste (ISME-ABCC)

http://www.inct-tmcocean.com.br/pdfs/Salomons/01_AtlasdosManguezaisdoNordestedoBrasil.pdf

Caçando ndicadores de mudanças climáticas no Nordeste (Ciência Hoje -SBPC)

http://www.inct-tmcocean.com.br/pdfs/Produtos/57_Mudancasclimaticas.pdf

foto_prof. DRUDEProf. Dr. Luiz Drude de Lacerda
LABOMAR/UFC

ldrude@fortalnet.com.br