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Amor che move

O desejo pode fortalecer a identidade e, da mesma forma, a identidade pode fortalecer, narcisisticamente, o desejo: fixando-o, moldando-o, prendendo-o. O desejo pode também ultrapassar e desconstruir a identidade. Estamos falando daquele desejo que queima, que acende as palavras e que os signos – incendiados e feitos faíscas, fragmentados e atarantados – não conseguem ordenar. Temos, portanto, duas estratégias literárias: de um lado o binômio identidade-resistência, que prende e aniquila o desejo, fechando-se na repetição do idêntico, no reflexo platônico do Mesmo. Do outro lado temos a resistência à interpelação do Outro, da ordem sócio-simbólica, resistência que não é identitária, mas sim ligada à um processo de “desidentificação”.

“Desidentificar”, então. Severo Sarduy, homme de lettres latino-americano culturalmente ativo na Paris de “Tel Quel”, traçou um paralelo entre a arte do romancista italiano Carlo Emilio Gadda e a escrita do cubano José Lezama Lima, aproximando tais autores porque em ambos “a eloquência do vegetal, da voluta cubana ou da torsão flaviana se convertem em articulação mecânica, em nexo disforme”. Sarduy acrescenta: “a multiplicação adjetival e a complexidade sintática em contrafação retórica; a assoante alegria do rococó, em chiado; o Mito, em Sátira; a História em farsa”.

O desejo pode, em suma, “desidentificar”, levando além da identidade, num movimento caracterizado pela falta, pela busca de uma plenitude originária inalcançável: uma procura trágica. Um dos maiores poetas viventes, o nova-iorquino John Ashbery, chamou esse curto circuito do desejo, preso – sem saída – nas abstrações vazias da identidade (vazias, como vazia é uma bola de cristal), de “not-being-us”, “não-ser-nós” no seu poema Self-Portrait in a Convex Mirror:

Estás permitindo que assuntos externos

Fragmentem teu dia, empanem o foco

Da bola de cristal. Sua paisagem vai à deriva

Como vapor dispersado no vento. As férteis

Associações mentais que até agora vinham

Com facilidade, não aparecem mais, ou só raramente. Suas

Cores são menos intensas, desbotadas

Pelas chuvas e ventos de outono, deterioradas, enlameadas,

Devolvidas a ti porque são imprestáveis

(vv. 480-488; tradução de Viviana Bosi Concagh).

O desejo, porém, pode também transformar a identidade, tornando esse devir um pleno: uma transmutação, uma transcriação, uma “transhumanação”.

Amor che move, de Manuele Gragnolati, (Milano, Il Saggiatore, 2013) foca nesta superação da representação e, principalmente, nessas trans-identidades, analisando textos de Dante Alighieri (“transhumanar” é um neologismo que encontra-se na Divina Comédia) e dos escritores italianos do século passado (Elsa Morante e Pier Paolo Pasolini). Nesse sentido, a obra gira em dois eixos (idade media – modernidade plena): o livro de Gragnolati investiga tanto expressões do século XIV anteriores ao nascimento do sujeito moderno quanto, de forma complementar, as expressões literárias da segunda metade do século XX, no momento em que essa concepção de subjetividade já encontra-se profundamente questionada.

Gragnolati evoca a teórica norteamericana da cultura Donna Haraway e o conceito de difração, a partir da contribuição da interpretação literária desse conceito que Haraway popularizou no livro Modest_Witness de 1997. Se seguimos Gragnolati na utilização dessa categoria, podemos afirmar que a interligação entre identidade e resistência está embasada num processo de reflexão, no sentido material e físico; em outras palavras, entendendo por reflexão o reflexo da luminosidade de uma onda no momento em que ela encontra um obstáculo, reflexo que permanece compacto. Diversamente da reflexão, na física a difração é o desvio produzido por um obstáculo sobre a onda luminosa. Produzir uma difração não significa portanto repetir modelos, mas criar interferências entre textos diversos, ultrapassando a mera textualidade.

Alguns exemplos, que encontramos em três dos sete – intensos – capítulos do livro. No primeiro e segundo capítulo aparece com nitidez o processo difrativo que Pasolini leva a cabo em relação a Dante. Gragnolati observa que com Vita Nova, texto juvenil que Dante escreve no final do século XIII, nasce a concepção moderna de autor: o livro retrata uma personagem Dante, um Dante sujeito cuja “autoridade” é determinada pelo controle exercido sobre o desejo que o amor para Beatriz desencadeia, um desejo sublimado enquanto racionalizado (Beatriz é angélica e imaterial),  muito diferente da visceralidade dos trovadores.

O que Pasolini faz na década de setenta, com a publicação da Divina mimesis, versão “contemporânea” da Divina commedia, é desconstruir a auctoritas moderna: a estrutura da Divina mimesis é inacabada, a forma torna-se paródica, expressando – escreve Gragnolati – “aquela coexistência de passado e presente que encontra-se em diversas obras de Pasolini e que representa uma forma de resistência à ideia de uma temporalidade linear  e progressiva, na qual o passado seja substituído pelo presente”. Uma resistência, justamente, não identitária. Uma resistência que coloca-se ao oposto dos empasses de Lezama Lima, Gadda ou Ashbery, adquirindo um valor positivo. Em um romance de Pasolini como Petrolio – ao qual Gragnolati dedica um inteiro capitulo de Amor che move – é visivelmente operativa “uma modalidade de transgressão que sacode e despedaça o ego e é abraçada tanto como união cósmica quanto como resistência à homologação e ao neocapitalismo”. Representa um grande mérito de Gragnolati ter mostrado a compatibilidade das heresias pasolinianas com a perspectiva queer.

Difrativa é também a estratégia de criação literária de Elsa Morante. Gragnolati analisa Aracoeli, o ultimo romance (1982) da escritora italiana. Morante conta a historia de um homossexual que tenta reconstruir a caótica parábola existencial da própria mãe. Esse percurso de reconstituição tanto biográfico quanto psicanalítico mostra-se particularmente tenso e perturbado, se articulando através de viradas e rasgos emotivos dentro da interioridade do protagonista: rupturas não lineares do ponto de vista da organização narrativa e dos cânones de estilo próprios da literatura italiana da segunda metade do século XX. O curto circuito envolve diferentes níveis,  conforme explica Gragnolati: “a revolução poética do romance acontece, de fato, também no nível da estrutura narrativa, fragmentada e distorcida, desestabilizadora nas suas continuas interrupções e inversões de gêneros, ritmos e perspectivas”.

A visão de Gragnolati sobre Morante é particularmente aguda e original. Ela se distancia de outras leituras mais consolidadas, como – por exemplo – a interpretação de Giorgio Agamben, contida num livro que foi traduzido aqui no Brasil no ano passado (2014), intitulado de Categorias italianas (Florianópolis, Editora Ufsc: tradução de Carlos Eduardo Schmidt Capela e Vinícius Nicastro Honesco). Agamben exalta na arte da Morante uma capacidade de sair da literatura concebida como instituição, ou seja, da literatura vivenciada pelos escritores, na maioria das vezes inconscientemente, como dispositivo de poder. Segundo Agamben, Morante opera através de estratégias paródicas, conferindo à paródia um sentido bem peculiar, que remete ao sentido etimológico da palavra: parà é o espaço “ao lado do canto”. O filósofo italiano observa na Morante e em Pasolini – com a exceção de alguns momentos, momentos de parábase, quer dizer, de interrupção desse processo paródico – uma vocação trágica, que torna a parodia “séria”: a paródia “exprime a impossibilidade de a língua alcançar alguma coisa, e a impossibilidade da coisa encontrar o seu nome”.

A exegese de Gragnolati se coloca numa outra vertente e escolhe não supervalorizar dicotomias como canto/paródia ou paródia/parábase. Tais polarizações, de fato, questionam e colocam em cheque categorias como sujeito ou gênero, mas não conseguem se emancipar delas. Em Amor che move encontramos uma leitura contra-corrente das difrações de Pasolini e Morante, assim como de Dante, o Dante da Divina comédia que torna-se altíssimo poeta enquanto não limita-se em refletir em sue poema mais famosos a Vita nova, mas realiza uma difração da configuração autoral que encontrava-se na Vita nova. Gragnolati indica na obra de Morante e Pasolini uma escritura na qual a individualidade não é identitária, mas “fluente e relacional, que é aceita na sua singularidade e persiste na memória e no corpo”. Eis a palavra-chave do inteiro livro: o corpo. É na corporeidade que desejo e linguagem encontram um além que não coincide com o manque. O devir é presença e, a palavra, materialidade viva.

Prof. Yuri Brunello

e-mail: ybrunelloomatic@gmail.com