DOCÊNCIA, PESQUISA E O FAZER ARTÍSTICO: APROXIMAÇÕES

LiandroLiandro Roger Memória Machado

     Sempre acreditei que uma boa prática acadêmica não pode ser desvinculada da dimensão empírica, vivencial do campo de estudo. Nós, docentes e pesquisadores, por vezes, vemo-nos imersos em livros, reflexões e exercícios teóricos. A despeito da importância central do pensar no fazer acadêmico, penso que a atividade intelectual deve ir além do estudo distanciado. No campo das artes e das práticas de produção de sentido, isso é mister: precisamos de uma bagagem experiencial tanto quanto precisamos da capacidade analítica e reflexiva. Precisamos “sujar as mãos” com o que estudamos se quisermos ensinar e produzir conhecimento de qualidade.

     Sou professor de desenho, ilustração e concepção visual – assuntos que, para muitas pessoas, parecem mistificados, mais ligados à intuição, à expressão e ao “talento” do que à racionalidade científica que predomina em nosso meio acadêmico. Nessa área, a articulação teórica tem, de fato, pouco a contribuir se não for intimamente relacionada ao exercício técnico. O aprendizado do desenho não acontece na aula expositiva ou na leitura, mas no ato de desenhar, na tentativa, no risco. Não é possível aprender a desenhar sem desenhar; da mesma forma, não se pode ensinar desenho centrado em palestras ou aulas expositivas; o domínio prático, o conhecimento essencialmente calcado na experiência é fundamental.

     Não é por isso, no entanto, que o estudo do desenho prescinde de validade acadêmica. Ao contrário: penso que essa forma peculiar de pensamento que o fazer artístico exige enquanto campo de estudo tem muito a contribuir para a produção de conhecimento. Sua validade e importância para a universidade residem justamente no rompimento dos padrões, em uma outra perspectiva de se encarar ensino e pesquisa, em um olhar diferenciado demandado em função das particularidades do campo de estudo.

     Em minha dissertação de mestrado, tenho buscado essa aproximação entre a reflexão teórica e a produção empírica, uma postura que parece pouco explorada nos programas de pós-graduação e nas práticas de pesquisa em Comunicação. Ao assumir a proposta de produzir uma história em quadrinhos como parte integrante de minha pesquisa, acredito estar sendo orientado pela ideia de que a produção artística também é produção de conhecimento, pela crença de que minha visão sobre meu objeto de estudo será grandemente enriquecida pelo contato vivencial, pelo “sujar as mãos”, pelo fazer. Se a articulação de ideias por meio de palavras é essencial à reflexão científica, articular ideias por meio de outras linguagens não deve ser menos importante no exercício acadêmico.

     Por outro lado, obviamente, a produção artística parece não constituir uma prática acadêmica efetiva se não for acompanhada de uma reflexão atenta e embasada do fazer. Nesse sentido, a obra artística, como objeto de pesquisa, requer ser mais que apenas um “produto”, requer a construção de um pensamento, de um saber que se desenvolve em função do olhar sobre o fazer. O fazer artístico e o pensar acadêmico caminham juntos: as palavras buscam resgatar o que a linguagem visual deixa implícito, ao mesmo tempo em que a obra e a experiência emprestam ao texto olhares dos quais o signo verbal sozinho não dá conta.

     Na pesquisa, penso que um dos caminhos pelos quais essa aproximação entre o pensar e o fazer pode acontecer é por meio uma abordagem etnográfica, numa perspectiva antropológica. A auto-etnografia, essa complexa prática de observar a si mesmo e à própria produção sígnica como fenômeno culturalmente situado, parece se apresentar como um método que, academicamente válido, possibilita abertura suficiente para a proposta de unir a produção artística e a reflexão científica. Minha pesquisa no mestrado tem sido conduzida nesse sentido: investigar minha produção artística sob um olhar auto-etnográfico. Assim como em qualquer pesquisa etnográfica, exige imersão em contexto, observação atenta, sensibilidade aos diversos fenômenos do campo – talvez ainda acrescida de um grau maior de dificuldade, tendo em vista que o “campo” concerne às atividades do próprio pesquisador. Não tem sido uma tarefa fácil, mas os insights e o desenvolvimento das ideias têm sido grandemente enriquecidos pela vivência da produção. Desbravar os caminhos do fazer, certamente, tem proporcionado um outro olhar, mais próximo, de maior contato com o objeto de estudo, menos distanciado do que aquele que seria lançado sobre uma obra pronta, produzida por outrem. A visão de pesquisador ganha nova forma ao se mesclar com a visão de autor.

     Mas a importância da experiência não está restrita à pesquisa. Em sala de aula, tenho buscado uma melhor compreensão do ponto de vista dos alunos no intuito de promover melhores condições de aprendizado, e essa compreensão tem sido pautada não apenas pelo diálogo com os discentes, mas pela tentativa de vivenciar o processo de aprendizagem, de “me colocar no lugar do aluno”. Muitas atividades que compõem o conteúdo de minhas disciplinas não foram atribuídas a mim na época de estudante (minha formação se deu em Publicidade e Propaganda, uma área ligeiramente distinta do Design Multimídia, em que atuo hoje como docente). Assim, tem sido fundamental buscar realizar, eu mesmo, as atividades que atribuo aos alunos. É fato que, pela natureza dos assuntos das minhas aulas, o domínio técnico é tão importante quanto o teórico; no entanto, a postura de experiência à qual me refiro é a atitude de “fazer junto”, buscando “sentir na pele” os percalços que envolvem a realização da atividade.

     Assim, nas aulas de desenho, estou sempre desenhando junto aos alunos – ora para demonstrar métodos e técnicas, ora para desempenhar um papel de modelo a seguir, ora para investigar, em profundidade, as particularidades experienciais de uma atividade. Nas aulas de concepção visual, os resultados de minhas produções têm servido não apenas como exemplos para uso em sala de aula, mas como produções de portfólio e exercícios de aprendizado técnico. A prática constante tem sido, sem dúvida, a melhor forma de estudar e de ensinar.

     Dessa forma, acredito que a prática acadêmica no campo das artes e dos estudos da produção de sentido pode ser significativamente enriquecida se o pensar e o fazer dialogarem de maneira próxima. Os seres humanos têm o privilégio da cognição e da racionalidade, mas sua dimensão sensorial não pode ser esquecida. Aliados à reflexão teórica e filosófica, a vivência, o contato direto e a experiência têm, certamente, muito a contribuir para a produção de conhecimento.