Sobre o tornar-se um artista-pesquisador-docente

Tharyn Stazak[1]

Como docente do Curso de Teatro-Licenciatura da UFC venho acompanhando a cada ano a entrada de quarenta novos estudantes que acolhem nossa proposta de formação. Tal proposta é voltada a profissionais cujo objetivo seja atuar no âmbito das artes cênicas/teatro em situações formadoras diversas, mas sobretudo, nas escolas de educação básica. No cerne dela constrói-se a concepção do artista-pesquisador-docente – um perfil que pretende enfatizar processos formativos capazes de articular as três funções: o artista como conhecedor das técnicas e das especificidades do fazer artístico teatral, o docente como disparador de processos pedagógicos nesta área e o pesquisador como criador de pensamento a partir da investigação, da análise e da transformação de suas práticas artísticas e pedagógicas. Ao optar pelo uso do trinômio entende-se que tais funções devam percutir umas nas outras, equiparando-se e amarrando-se, já que cada uma, à sua maneira, lida com a criação.

Partindo desta concepção, o Projeto Pedagógico do Curso apresenta um núcleo bastante orientado de componentes obrigatórios mas, também estimula cada estudante a realizar o seu próprio percurso ofertando um conjunto diverso e relativamente amplo de disciplinas eletivas e optativas que podem ser escolhidas em sua própria integralização curricular ou buscadas em outros cursos da Universidade. Essa perspectiva visa proporcionar uma experiência transdisciplinar e multirreferencial na partilha dos processos de formação, pesquisa e criação ao estimular o estudante a se matricular em componentes de outros cursos ofertados no Instituto de Cultura e Arte (Dança, Cinema e Audiovisual, Filosofia, Música, Design de moda, Gastronomia) ou de outras unidades acadêmicas.

Diante de tais possibilidades, ainda assim, percebe-se que nem sempre a escolha dos componentes eletivos e optativos pelos estudantes orienta-se por questões provenientes das inquietações que surgem de suas práticas (artística, de pesquisa e pedagógica) e pelas descobertas que fazem na direção de um percurso formativo próprio. Logo, considerando a necessidade de provocar a percepção dos estudantes para essa auto-orientação, propus trabalhar este aspecto junto às turmas ingressantes a partir da disciplina de Improvisação. A ementa deste componente propõe o estudo da Improvisação a partir dos conceitos e de uma abordagem histórica, compreendendo as técnicas e a prática do jogo na criação da cena disparadas por textos, personagens e situações dramáticas, bem como pela reflexão acerca de suas possibilidades pedagógicas. Este contexto, portanto, permite focalizar estratégias para impulsionar os processos de formação de um professor de teatro que experimente e compreenda a pesquisa sistemática tanto de sua prática pedagógica quanto de sua prática artística. A questão que dispara a prática como pesquisa é: como possibilitar, neste contexto, uma experiência inicial para que o estudante compreenda que ele é responsável por tornar-se um artista-pesquisador-docente?

As respostas a esta questão vêm sendo mediadas e reorganizadas por meio de processos pedagógicos compartilhados com estudantes da disciplina de Improvisação desde o ano de 2014. A pesquisa se organiza sistematicamente a partir de três eixos: princípios, procedimentos e produtos.

Na busca dos princípios, parte-se da ideia de encontro. Fazer teatro é promover encontros com materialidades, com textos, com memórias, consigo mesmo, com o outro, com um público, com o mundo. Trata-se de um movimento de ir “ter com”, que aponta para a exposição, para a reciprocidade e para a abertura à alteridade. Foi trabalhando sobre esta ideia de encontro que se acolheu e selecionou, no decorrer dos processos, alguns princípios que vêm sendo experimentados e manuseados. São eles: a escuta atenta, o desnudamento, a ação presente, a sensorialidade aberta, o corpo relacional, a abertura para o intuitivo, a improvisação como criação, a produção de energia, o acesso a estados e fluxos e a criação de novas narrativas. Como um princípio “[...] opera por uma didática estética, de reconhecimento, aproximação, pulsão, desejo, compreensão, invenção” (RANGEL, 2006, p.3), ele permite experimentar este reconhecimento através do jogo assim como permite construir intuitivamente e coletivamente seu entendimento.

Os procedimentos de trabalho organizam-se em torno da viabilização de uma atmosfera criativa. A proposta de pesquisa, a cada aula, geralmente inicia com a experimentação e posteriormente, com o manuseamento criativo de cada um destes princípios por meio de dispositivos que possibilitam o encontro dos corpos com os materiais de atuação (textos, música, vídeos, imagens). Os dispositivos são compostos por indutores de jogo, por técnicas e por noções teatrais e seus objetivos não são guiar ou impor um modo de fazer, mas possibilitar a exposição ao encontro e trazer para fora os meios expressivos individuais.

Os produtos resultantes destas experimentações e do manuseamento criativo destes princípios acabam por dar uma forma à experiência. Além de se efetivarem como resultado material do processo de pesquisa e de criação na disciplina, servem também para comprovar o “trabalho das inteligências” – o que se viu, o que se leu e o que se escreveu sobre (RANCIÈRE, 2013, p.40). No movimento de reelaboração dos processos em questão, são criados além das composições cênicas individuais, documentos e testemunhos de aprendizagem manifestados tanto na expressão pessoal quanto coletiva: diários de bordo e registros poéticos individuais (como testemunho de si e do seu olhar sobre o outro), narrativas cênicas coletivas (que obviamente se compõem diferentes a cada processo) e também textos crítico-reflexivos acerca dos aspectos de formação do artista-pesquisador-docente. Esses produtos, disparados pelo repertório de vivências, vem permitindo o exercício de “adquirir uma língua” (LARROSA, 2015, p. 59) para dizer a experiência individual dos estudantes nas dimensões das práticas de pesquisa, artística e pedagógica.

Os diários de bordo, como documento, tem permitido de alguma forma o acesso ao processo de criação de pensamento a partir da escrita. Revela o que foram capazes de perceber, de significar, de relacionar, de comparar, de analisar, de avaliar, de projetar e de transpor. Trata-se de um exercício rico de elaboração de ideias que pode e deve ser mantido por toda a formação. O desempenho dos estudantes durante as aulas demonstra sua compreensão do fazer teatral (este que só se dá na prática, que vai se inscrevendo na carne mesmo): as noções de disponibilidade, a escuta, a abertura e a generosidade para com o outro, o desnudamento, o rigor da experimentação, a atenção aos detalhes, de exploração de novas possibilidades inéditas, o desenvolvimento gradual da expressão do corpo, a aquisição e desenvolvimento da linguagem teatral. Tudo isso que me foi contado durante o processo de experimentação e de criação, também esteve refletido nos produtos finais de cada turma – que ganharam a forma de uma narrativa cênica coletiva, e foram apresentados ao público ao final de cada semestre de pesquisa e criação.

Destacam-se duas estratégias deste processo: o registro poético e a criação de um ambiente de pesquisa sobre si mesmo. O registro poético surgiu como uma variação do protocolo de aula (forma de avaliação de gênero discursivo proposta por Ingrid Koudela) e ganhou uma dimensão criativa e pedagógica que eu não imaginava. A cada aula duas pessoas assumiam o papel de testemunhas do processo e apresentavam na aula seguinte uma síntese poética daquilo que viram. Quem observa a aula para realizar o registro poético não deixa de experimentar nem perde a aula, apenas ganha outra perspectiva. Ganha como pesquisador – com uma perspectiva distanciada e objetiva, como um etnógrafo que observa um processo se desenrolando e tem oportunidade de registrá-lo. Ganha como criador – ao ver e perceber atentamente o processo, ao experimentar posteriormente, ao selecionar com cuidado o que poderá trazer como proposta artística (performance, cena, micro-dramaturgia, partitura) e ao ouvir a reflexão dos colegas sobre o trouxeram. Através deste registro poético individual foi possível me aproximar da capacidade de síntese que a arte nos exige; me aproximar do olhar sensível e da criatividade de cada um. Perceber o que focalizam, as habilidades, o trabalho de seleção de materiais e de escolha de uma forma artística. Trabalho de criação por atravessamentos. É leitura de leitura. É reaprender a ler também. É ler com o corpo. É traduzir.

Entre o estar à beira e ordenar os processos na disciplina de improvisação, tem sido possível criar um espaço para exercitar a tarefa pedagógica de puxar o estudante para fora de si mesmo, pensando a sala de aula como um laboratório de ensaios, de pesquisa sobre si mesmo e sobre o coletivo. Um espaço no qual cada um se expõe, se experimenta, se esquece e, tentativa a tentativa, cria algo novo – seja um novo corpo, uma forma artística, um novo pensamento. Nestes processos tem sido cada vez mais perceptível o aumento do nível de entrega dos estudantes ao propor o desnudamento de si, a abertura para o outro. Abandonar-se ao espaço de exposição somente é possível após a decisão de partir. Mas não é apenas partir, é partir-se, repartir-se. É tornar-se em vários, é enfrentar o exterior, é bifurcar-se em outra, em qualquer, direção. (SERRÉS, 1993, p.24). Ao sair do território seguro, é preciso antes uma inocência, “esquecer” o que se aprendeu, um ato de entrega ao “[...] fazer a travessia para conhecer a solidão” (SERRÉS, 1993, p.21). É justamente no meio, no entre, que algo se inclui na constituição do si. A percepção disto que se inclui pode vir durante a própria travessia ou pode se realizar muito tempo depois que ela se concretize. Respeitando o tempo de elaboração da experiência, o trabalho e a pesquisa com a disciplina de Improvisação têm permitido intuir algo do que se leva adiante, do que devém da passagem por esta zona de troca, de mestiçagem: a criação de círculos éticos, a justa medida, o prazer, a pesquisa e a experimentação ininterruptas, o aumento da capacidade de dizer por si, a criação de si mesmo.

Como disparadora de um processo aberto, ofereço não um repertório pessoal e sim uma perspectiva de trabalho com o pensamento. “É como aprendiz, isto é, como criador (e não como sábio ou mestre), que o professor se transmite enquanto pensador” (ROLNIK, 1993, p. 248). O sentido de autoridade se desloca para o de coautoria enquanto componho dispositivos para experimentação e criação sem impor um saber. Crio e ofereço os dispositivos e, durante as pesquisas dos estudantes, minha atenção volta-se para a escuta, para as problematizações acerca das formas de condução e do manuseamento de material, para as questões relacionadas à autonomia criativa dos estudantes, para a manutenção da processualidade, para as manifestações e o questionamento das formas de poder, para a viabilização da construção de círculos éticos. Por outro lado, há também o movimento de retorno sobre mim mesma que descortina meus modos de operar: um investimento de auto percepção, desencadeada pela atenção às posições que assumo em meio às práticas e aos discursos que me compõem, me constituem no espaço. Os estudantes, por sua vez, precisam guiar-se por suas inquietações e descobertas através da pesquisa (sobre si mesmos e sobre a práxis coletiva nestes processos). Ao se depararem com esta postura que é oferecida, possam compreender que um professor não é um modelo, mas pode inspirar a partir de seu próprio trabalho com o pensamento.

Se no momento da partida os estudantes ingressantes acolhem a proposta e o perfil do Curso, este é o momento pontual para que comecem a tomar conhecimento dos modos de se produzir a si mesmo. Assim, a perspectiva de criação e recriação a partir da experimentação de princípios na disciplina de Improvisação na formação inicial do artista-pesquisador-docente funciona como um pequeno empurrão que o coloca em movimento. Um empurrão que vai ao encontro da tese da formação de professores de teatro sob a perspectiva do que se faz com o que foi/é feito de si: entregues à sua própria intuição no movimento de conhecer e habitar um território, cada um é capaz de encontrar uma maneira de dar forma a si mesmo, de produzir-se a partir de seus próprios meios e matérias de constituição.

O objetivo desta ação, porque não existe educação sem intencionalidade, é fazê-los compreender que, em meio as possibilidades que o curso oferece, cabe a cada um deles escolher e trilhar seu caminho. Seja sabendo mover-se segundo suas inquietações e descobertas nos processos desencadeados nas disciplinas obrigatórias ou escolhendo por estas mesmas afinidades suas disciplinas eletivas e optativas. Que devem ser capazes de acolher outros saberes para fazer brilhar a liberdade de invenção e de pensamento.

 

 

Referências

 

LARROSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

 

RANCIÉRE, Jacques. O mestre ignorante. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

RANGEL, Sonia. Processos de criação: atividades de fronteira. In: Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas: “O trabalhos e os dias” das artes cênicas: ensinar, fazer e pesquisar dança e teatro e suas relações, 2006, Rio de Janeiro. Memória ABRACE X, Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p. 311-312.

ROLNIK, Suely. Pensamento, corpo e devir. In: Cadernos de Subjetividade, Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, Programa de Estudos Pós Graduados de Psicologia Clínica, PUC/SP, v.1, n.2, São Paulo, set./fev. 1993, p. 241-251. Disponível em: https://cadernosdesubjetividade.files.wordpress.com/2013/09/cadernossubjetividade-1-guattari-1993.pdf. Acesso em: 20 JUN 2015.

SERRÉS, Michel. O Terceiro Instruído. Lisboa: Instituto Piaget, 1993.



[1] Professora do Curso de Teatro-Licenciatura do Instituto de Cultura e Arte, coordenadora de área do PIBID-Teatro e membro do Grupo de Trabalho das Licenciaturas da UFC. É licenciada em Artes Cênicas e mestre em Teatro pela UDESC, e doutora em Artes Cênicas pela UFBA. Possui experiência na área do ensino de Arte e do Teatro, com ênfase na pedagogia teatral.