ENSINAR A DESAPRENDER

Lívia Mesquita

- A senhora ainda vai ter que aguardar, tem quatro pessoas na sua frente.

– Não posso esperar, vou trabalhar.
- Mas a doutora pode lhe dar um atestado.
- Não, não posso faltar trabalho, EU SOU PROFESSORA.

Metade orgulhosa, metade envergonhada por afirmação tão espontânea, foi desse modo que me golpeou, através dos olhos desprevenidos da recepcionista, o peso da profissão que me colheu aos 17 anos e que, ainda hoje, me enche de entusiasmo.

Não obstante toda a campanha contrária à carreira, creio que, além de toda a beleza simples do ofício, somos profissionais capazes de promover mudança em qualquer ordem estabelecida, mesmo que seja nas microssituações, como  foi o caso de um ex-aluno meu da Casa de Cultura Italiana. Certa vez, ao divulgar um curso avançado de conversação em língua italiana, eu disse que o curso seria para pessoas que tivessem um rendimento oral interessante, pois, do contrário, não acompanhariam o curso. Depois do aviso, esse meu aluno passou dias faltando e, retornando após o período vacante, dirigiu-se diretamente à coordenação, no ensejo de cancelar a sua matrícula. Ele teria sofrido bullying com aquela afirmação sobre o nível oral, e eu teria sido a sua agressora. A grande questão é que se tratava de um aluno muito bom e muito querido também. Eu jamais teria me referido a ele – e a nenhum outro aluno – da maneira agressiva como ele recebera a informação. Recorri a ele e pedi que verbalizasse a sua queixa, depois lhe contei a história de uma amiga que detestava aparecer nas fotos porque se achava gorda. Odiava ver-se nas fotos, no entanto, sempre depois de passado o tempo, ela revia as imagens e se achava lindona. O problema estava no modo como se via. Ele compreendeu o seu comportamento, me perdoou e me disse que não seria mais o mesmo depois do episódio. As coisas mudaram para ele e para mim.

Na mão da campanha contra a profissão, é queixoso o fato de sermos muito pouco preparados para lidar com os afetos das pessoas durante a formação docente. Fazemos pós-graduações, doutorado, nos enchemos de teorias e de conceitos, mas podemos ser agressivos sem perceber, estamos constantemente nos expondo e submetendo os nossos estudantes às variações próprias da nossa natureza. Por isso, às vezes, é preciso fazer como o poeta velhinho Manoel de Barros e procurar ensinar a desaprender também. Meu aluno desaprendeu um comportamento e ganhou em vida. Queria apenas aprender italiano, mas aprendeu a errar bem o próprio idioma. E eu desaprendi que aluno é uma palavra.

 

“Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor,
esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
- Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável, o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da
vida um certo gosto por nadas…
E se riu.
Você não é de bugre? – ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em estradas -
Pois é nos desvios que encontra as melhores
surpresas e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de agramática.”