Compartilhando outra experiência de avaliação: o caso da disciplina Direito Processual Penal

MARCIO-PEREIRA-h150Márcio Pereira

Embora este texto trate de uma experiência de avaliação relacionada a uma disciplina bastante específica do curso de Direito (Direito Processual Penal), é possível que esse compartilhamento possa vir a ter alguma utilidade para os/as professores/as dos demais cursos de Ciências Sociais Aplicadas e Humanas.

Inicio o texto citando uma famosa passagem do jurista argentino Alberto Binder:

“Este livro é uma introdução ao estudo dos mecanismos que nós, seres humanos, utilizamos para prender nossos semelhantes dentro de jaulas. Esta frase, que até me dói escreve, é a mais honesta apresentação que posso fazer deste trabalho, pensado para estudantes recém-ingressados na Universidade. Poderia apresentá-lo falando da justiça, da jurisdição, dos grandes princípios constitucionais, das inumeráveis metáforas que os juristas inventaram para acreditar que no final disto tudo não está o cárcere, mas não quero fazê-lo. – Senhores estudantes! No final disto tudo está o cárcere e o cárcere é uma jaula para prender humanos. Creio que este, por enquanto, é o nosso problema: a utilização de um instrumento cruel (necessário? desnecessário? ainda não tenho uma resposta) que, todavia, acreditamos ser civilizado. O grande perigo de todo aquele que se dedica ao estudo do Direito (…) é que lhe aconteça o mesmo que ao fabricante de guilhotinas: que se apaixone pelo brilho da madeira, do peso exato e do polimento da lâmina mortal, do ajuste dos mecanismos, do sussurro filosófico que antecede a morte e, finalmente, esqueça que alguém perdeu sua cabeça. Além disso, a história ensinou-nos que essa guilhotina, pela qual, talvez, nos tenhamos apaixonado, assassinou muitos cidadãos que lutaram pelos ideais que este livro procura explicar. Como conseqüência, este é uma livro para que ninguém se apaixone pelo Direito (…)”.

Pois bem, foi justamente pensando em oferecer uma dimensão mais real das mazelas do processo penal aos/às estudantes (na trilha de Binder) – evitando assim eventuais eufemismos jurídicos e análises circunscritas ao estudo das normas jurídicas estatais – que optei por realizar uma avaliação que tivesse por objeto casos penais reais. Assim, estabeleci uma parceria com o Escritório Frei Tito de Alencar (um combativo escritório ligado à Assembleia Legislativa do estado que, dentre outras coisas, apura eventuais violações a direitos humanos no Ceará), selecionei alguns casos e os trouxe para a sala de aula para a discussão com os/as alunos/as e posterior avaliação (devo enormes agradecimentos aqui às advogadas do Escritório Marília e Patrícia e aos/às seus/suas estagiários/as por viabilizarem essa atividade). Os casos selecionados foram bem variados: desde conflitos pela terra na zona litorânea de Paraipaba (CE) entre uma empresa de Carcinicultura (que ilegalmente cercou um terreno) e a comunidade pesqueira local, culminando, infelizmente, no homicídio de uma pessoa da comunidade pesqueira; a conflitos urbanos em torno do direito de acesso à água, como, por exemplo, ocorreu entre a poder público municipal e a comunidade estabelecida no bairro de José Walter, em Fortaleza (Comuna 17 de Abril), acarretando na prisão ilegal de uma pessoa da comunidade José Walter.

De posse desses casos, os/as estudantes foram estimulados/as a entrevistar pessoas, visitar comunidades, dialogar com movimentos sociais e, assim, a inscrever em um contexto mais amplo os casos que tinham em mãos (e o próprio Direito).

Em tempos de jargões infames como “bandido bom é bandido morto”, de tantos “âncoras” que propalam soluções higiênicas simplistas, de tanta indigência intelectual no campo penal, não é fácil lecionar uma disciplina tão “impopular” como essa. Assim, um mérito desse processo avaliativo tem sido justamente o de desconstruir (ou, ao menos, problematizar) certos dogmas que nos cercam.