Mistério do samba
Há uma bela música da banda pernambucana Mundo livre S/A, chamada “Mistério do samba”, cuja letra diz o seguinte:
“o samba não é carioca
o samba não é baiano
o samba não é do terreiro
o samba não é africano
o samba não é da colina
o samba não é do salão,
o samba não é da avenida,
o samba não é carnaval,
o samba não é da TV,
o samba não é do quintal
como reza toda tradição…
é tudo uma grande invenção!”
Dentre outras coisas, o que pode sugerir esse “Mistério do Samba”?
Que o fazer artístico (e científico) é baseado em constantes apropriações de nosso acervo cultural comum, numa verdadeira lógica da imitação, numa lógica do plágio?
Que é mítica a figura do gênio isolado que cria a partir do nada?
Que o conceito de originalidade absoluta é romântico? Afinal, como pensar na existência de um poema sem todos os outros poemas que o precederam?
Partindo dessas ideias, não seria razoável que a obra intelectual (científica), depois de um curto prazo de exclusividade do autor, retornasse ao nosso acervo cultural comum para que todos/as a utilizassem livremente, uma vez que o autor se apropria desse mesmo acervo para dar vida às suas criações? Na verdade, na origem da legislação de direito autoral (copyright) – Ato da Rainha Ana, Inglaterra, 1710 – essa era a ideia que predominava: um curto prazo de exclusividade para o autor (cerca de 14 anos) e o posterior retorno da obra ao domínio público (ao nosso acervo cultural comum).
No contexto da Revolução Francesa, a proposta não era diferente, já que se afirmou nessa época que a primordial função do Direito Autoral (le droit d’auter) seria a de fomentar, estimular a cultura. Tal fomento, segundo se dizia na época, dar-se-ia por meio da promoção de um delicado equilíbrio: por um lado, dever-se-ia garantir um breve tempo de exclusividade para que o autor, querendo, explorasse economicamente a sua obra (como forma de encorajá-lo a continuar criando); por outro lado, terminado esse curto prazo, a obra deveria retornar ao domínio público.
Porém, na contramão disso tudo, o sistema de direito autoral (copyright) contemporâneo promove uma verdadeira expropriação do nosso acervo cultural. As indústrias culturais, por meio de um poderoso lobby, tencionam parlamentos ao redor do planeta para impor uma lei autoral cada vez mais rígida, que visa atender, obviamente, aos seus próprios interesses e aos interesses de um punhado de mega-estrelas. Chegamos, hoje, ao patamar de, em regra, uma obra intelectual (livro, p. ex.) ser protegida durante toda a vida do autor e mais 70 anos após a sua morte (!?). Ou seja, se a obra é criada, p. ex., na juventude do autor, poderá facilmente permanecer blindada durante cerca de 120 anos (!?). Tal lógica do sistema contemporâneo de direito autoral – que opera com prazos de proteção exacerbados– não consegue resistir às críticas que lhes são dirigidas. Tendo em vista que o fazer artístico (científico) se baseia em constantes apropriações de nosso acervo cultural comum, não justifica alguém reivindicar um direito de propriedade exclusivo sobre um trabalho artístico por décadas e décadas, uma vez que, o criador, por mais genial que seja, no ato de concepção de sua obra, seguramente se inspirou em diversas outras preexistentes. Além disso, um prazo como esse não se justifica tendo em vista que o fazer artístico normalmente naufraga, fracassa – o que é bastante natural (dificilmente um livro chega à segunda edição, p. ex.). Logo, a possível exploração econômica exclusiva da obra por seu autor, costuma ter um prazo bastante reduzido. Assim, por mais esse motivo, também não se justifica um prazo tão alongado.
Os prazos de proteção praticados atualmente são excessivos, produzindo, pelo menos, dois efeitos nocivos: atravancar o livre acesso das obras pela coletividade (domínio público); e inibir o surgimento de trabalhos artísticos que, por ventura, pretendam se basear em material protegido. Poderíamos resumir dizendo que uma das consequências práticas negativas desse prazo excessivamente extenso é que muitas obras literárias e artísticas criadas na primeira metade do século XX ainda não ingressaram no domínio público.
Docente do Curso de Direito – UFC
marciofrpereira@gmail.com