mestremachado-01Prisioneiros do tempo, é isto que somos. Desde o despertador que interrompe o sono profundo às 6h da manhã, passando pelas inúmeras conferidas no relógio no decorrer do dia, hora disso, hora daquilo, até olhar pela última vez pouco antes de dormir.

Quando Brás Cubas tinha insônia, normalmente a madrugada era repleta de melancolia e enfado. Deitado, ficava ouvindo o barulho do relógio pendurado na parede anunciar a cada segundo, que um segundo a mais lhe era subtraído.

Usualmente, quando eu perdia o sono, o bater da pêndula fazia-me muito mal; esse tique-taque soturno, vagaroso e seco parecia dizer a cada golpe que eu ia ter um instante menos de vida. Imaginava então um velho diabo, sentado entre dois sacos, o da vida e o da morte, a tirar as moedas da vida para dá-las à morte, e a contá-las assim:

— Outra de menos…

— Outra de menos…

— Outra de menos…

— Outra de menos…

 

O mais singular é que, se o relógio parava, eu dava-lhe corda, para que ele não deixasse de bater nunca, e eu pudesse contar todos os meus instantes perdidos. Invenções há, que se transformam ou acabam; as mesmas instituições morrem; o relógio é definitivo e perpétuo. O derradeiro homem, ao despedir-se do sol frio e gasto, há de ter um relógio na algibeira, para saber a hora exata em que morre.” (Memórias póstumas de Brás Cubas, capítulo LIV)

No entanto, na noite em que Brás deu o primeiro beijo em Virgília, sua insônia foi deliciosa. Não sentiu enfado ou melancolia. Ficou “saboreando” o momento, com a cabeça prenhe de fantasias, de modo que “não ouvia os instantes perdidos, mas os minutos ganhados”. Em certo momento nem o barulho do pêndulo do relógio ele ouvia mais. Verdade que o beijo era adulterino, e isto, pode-se dizer, macula a bonita abolição do tempo e do relógio que ele alcançou naquela noite. Mas fica a impressão de que a paixão – por alguém ou por algo – pode nos livrar, ao menos temporariamente, dessa prisão do tempo e do relógio. Em sala de aula, atuando como professor, às vezes acontece comigo. Inclusive passando da hora.

 

Prof-RaulProfessor Raul Nepomuceno

Faculdade de Direito
Departamento de Direito Público
raulnepomuceno@gmail.com