mestremachado-01Machado de Assis era um exímio observador. Enxergava o que poucos são capazes de enxergar e, o que é mais impressionante, expressava isso com habilidade e clareza insuperáveis – e quase sempre cruéis.

Um dos meus contos favoritos de Machado se chama “Teoria do Medalhão”. Trata-se de obra magna da mais pura e fina ironia. É um diálogo entre um pai e seu filho recém-chegado à maioridade (na época, 21 anos). A história começa exatamente quando se encerra a festa de aniversário de 21 anos do rapaz, momento em que seu pai o chama para uma conversa muito séria.

Eis o preâmbulo:

“ – Estás com sono?

– Não, senhor.

– Nem eu; conversemos um pouco. Abre a janela. Que horas são?

– Onze.

– Saiu o último conviva do nosso modesto jantar. Com que, meu peralta, chegaste aos

teus vinte e um anos. Há vinte e um anos, no dia 5 de agosto de 1854, vinhas tu à luz, um pirralho de nada, e estás homem, longos bigodes, alguns namoros…

– Papai…

– Não te ponhas com denguices, e falemos como dois amigos sérios. Fecha aquela porta; vou dizer-te coisas importantes. Senta-te e conversemos.

Em seguida, o pai zeloso passa a dar lições ao filho de como se tornar um legítimo e bem-sucedido medalhão, ou seja, um homem “importante”, que, embora muitas vezes vazio e nulo, goza de muito prestígio e de muito respeito perante os outros. Os grifos, sempre, são meus.

“– Vinte e um anos, algumas apólices, um diploma, podes entrar no parlamento, na magistratura, na imprensa, na lavoura, na indústria, no comércio, nas letras ou nas artes. Há infinitas carreiras diante de ti. Vinte e um anos, meu rapaz, formam apenas a primeira sílaba do nosso destino. (…) A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as esperanças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por diante.

– Sim, senhor.

– Entretanto, assim como é de boa economia guardar um pão para a velhice, assim também é de boa prática social acautelar um ofício para a hipótese de que os outros falhem, ou não indenizem suficientemente o esforço da nossa ambição. É isto o que te aconselho hoje, dia da tua maioridade.

– Creia que lhe agradeço; mas que ofício, não me dirá?

– Nenhum me parece mais útil e cabido que o de medalhão. Ser medalhão foi o sonho da minha mocidade; faltaram-me, porém, as instruções de um pai, e acabo como vês, sem outra consolação e relevo moral, além das esperanças que deposito em ti. Ouve-me bem, meu querido filho, ouve-me e entende.

Pois vamos, então, às cinco “lições básicas” para ser tornar um autêntico medalhão e alcançar prestígio numa sociedade de aparências.

LIÇÃO 01
NÃO TER IDÉIAS PRÓPRIAS, MAS APENAS REPETIR O QUE OUVIR DOS OUTROS

PAI – “Venhamos ao principal. Uma vez entrado na carreira, deves pôr todo o cuidado nas ideias que houveres de nutrir para uso alheio e próprio. O melhor será não as ter absolutamente!”

(…)

FILHO – “Mas quem lhe diz que eu…”

PAI – “Tu, meu filho, se me não engano, pareces dotado da perfeita inópia mental, conveniente ao uso deste nobre ofício. Não me refiro tanto à fidelidade com que repetes numa sala as opiniões ouvidas numa esquina, e vice-versa, porque esse fato, posto indique certa carência de ideias, ainda assim pode não passar de uma traição da memória. Não; refiro-me ao gesto correto e perfilado com que usas expender francamente as tuas simpatias ou antipatias acerca do corte de um colete, das dimensões de um chapéu, do ranger ou calar das botas novas. Eis aí um sintoma eloquente, eis aí uma esperança.”

LIÇÃO 02
ANDAR SEMPRE ACOMPANHADO DE GENTE DESOCUPADA E FÚTIL; EVITAR AS LIVRARIAS, EXCETO SE FOR COM A FINALIDADE DE SER VISTO PELOS OUTROS

PAI – “O passeio nas ruas, mormente nas de recreio e parada, é utilíssimo, com a condição de não andares desacompanhado, porque a solidão é oficina de ideias, e o espírito deixado a si mesmo, embora no meio da multidão, pode adquirir uma tal ou qual atividade.”

FILHO – “Mas se eu não tiver à mão um amigo apto e disposto a ir comigo?”

PAI – “Não faz mal; tens o valente recurso de mesclar-te aos pasmatórios, em que toda a poeira da solidão se dissipa. As livrarias, ou por causa da atmosfera do lugar, ou por qualquer outra razão que me escapa, não são propícias ao nosso fim; e, não obstante, há grande conveniência em entrar por elas, de quando em quando, não digo às ocultas, mas às escâncaras. Podes resolver a dificuldade de um modo simples: vai ali falar do boato do dia, da anedota da semana, de um contrabando, de uma calúnia, de um cometa, de qualquer coisa, quando não prefiras interrogar diretamente os leitores habituais das belas crônicas de Mazade; 75% desses estimáveis cavalheiros repetir-te-ão as mesmas opiniões, e uma tal monotonia é grandemente saudável. Com este regime, durante oito, dez, dezoito meses – suponhamos dois anos, – reduzes o intelecto, por mais pródigo que seja, à sobriedade, à disciplina, ao equilíbrio comum. Não trato do vocabulário, porque ele está subentendido no uso das ideias; há de ser naturalmente simples, tíbio, apoucado, sem notas vermelhas, sem cores de clarim…

 

LIÇÃO 03
CUIDAR DO MARKETING PESSOAL COM ESPECIAL ZELO

PAI – “Não te falei ainda dos benefícios da publicidade. A publicidade é uma dona loureira e senhoril, que tu deves requestar à força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, coisas miúdas, que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição. Que D. Quixote solicite os favores dela mediante ações heróicas ou custosas, é um sestro próprio desse ilustre lunático. O verdadeiro medalhão tem outra política. Longe de inventar um Tratado científico da criação dos carneiros, compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar, cuja notícia não pode ser indiferente aos seus concidadãos. Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante os olhos do mundo. Comissões ou deputações para felicitar um agraciado, um benemérito, um forasteiro, têm singulares merecimentos, e assim as irmandades e associações diversas, sejam mitológicas, cinegéticas ou coreográficas. Os sucessos de certa ordem, embora de pouca monta, podem ser trazidos a lume, contanto que ponham em relevo a tua pessoa.”

LIÇÃO 04
APARENTAR TER CONHECIMENTOS DE FILOSOFIA, MAS NA REALIDADE FUGIR DELA

FILHO – “Nenhuma filosofia?”

PAI – “Entendamo-nos: no papel e na língua alguma, na realidade nada. ‘Filosofia da história’, por exemplo, é uma locução que deves empregar com frequência, mas proíbo-te que chegues a outras conclusões que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade, etc, etc.”

LIÇÃO 05
SER ENGRAÇADO, MAS EVITAR A IRONIA FINA; USAR APENAS PIADAS GROSSEIRAS – AS “CHALAÇAS”

PAI – “Tens um gênio folgazão, prazenteiro, não hás de sofreá-lo nem eliminá-lo; podes brincar e rir alguma vez. Medalhão não quer dizer melancólico. Um grave pode ter seus momentos de expansão alegre. Somente, — e este ponto é melindroso…

FILHO – “Diga…

PAI – “Somente não deves empregar a ironia, esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos cépticos e desabusados. Não. Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que se mete pela cara dos outros, estala como uma palmada, faz pular o sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensórios. Usa a chalaça.”

Eis que o filho alerta seu pai de que a hora já é avançada, ocasião em que o diálogo se encerra.

FILHO – “Meia-noite”.

PAI – “Meia-noite? Entras nos teus vinte e dois anos, meu peralta; estás definitivamente maior. Vamos dormir, que é tarde. Rumina bem o que te disse, meu filho. Guardadas as proporções, a conversa desta noite vale o Príncipe de Machiavelli. Vamos dormir.”

Acho que nem preciso me esforçar para estabelecer uma relação entre essas “lições” e a atividade de um professor universitário. Obviamente, no desejo  de que tais “lições” sejam desprezadas.

Quem quiser ler o conto inteiro pode encontrar “Teoria do medalhão” aqui:

http://machado.mec.gov.br/images/stories/html/contos/macn003.htm#teoria_do_medalhao_abaixo

Prof Raul

Professor Raul Nepomuceno

Faculdade de Direito
Departamento de Direito Público
raulnepomuceno@gmail.com