A DRAMATURGIA SOCIOLÓGICA DE ERVING GOFFMAN

Este texto visa refletir a respeito da teoria de papéis de Erving Goffman, priorizando as relações regionais – o palco, a plateia e os bastidores. A partir deste recorte, objetiva-se discutir os conceitos utilizados pelo autor, a fim de buscar em sua compreensão dramatúrgica as dimensões éticas e estruturais do sistema social postas nas definições e conceitos de sua teoria. Para tanto é preciso ler na linguagem dramatúrgica e Goffman  o teatro enquanto movimento social, a partir de sua história a importância na sociedade desde a Grécia Antiga, onde nasceu como expressão popular se expandindo aos castelos medievais.

O teatro tanto trouxe para o palco a realidade travestida de valores, normas, crenças, padrões comportamentais, como foi espaço para as manifestações libertárias; mas também instrumento potente para manipulação do poder hegemônico.

A dramaturgia, ao acompanhar o processo histórico e cultural do teatro, se tornou um gênero literário fundamental para a reflexão da arte de representar papéis num palco fictício, mas também no espaço social, público, institucional ou privado e particular. Por esse caminho torna-se possível dizer que uma teoria sociológica assume um caráter de dramaturgia, quando traz conteúdos que incitam a reflexão da dinâmica representacional na vida cotidiana.

Nas relações interpessoais e intersubjetivas da vida cotidiana, as impressões e expressões advindas da representação do eu marcam reflexões sobre as dinâmicas grupais nos estabelecimentos sociais. Tais idéias estão amparadas por uma compreensão da estrutura social, assim como pelas considerações às categorias psicológicas do fenômeno em questão. Assim, Goffman analisa o contexto institucional a partir de perspectivas técnicas, políticas, estruturais e culturais das dramatizações, a qual assume uma quinta perspectiva de análise – a dramatúrgica – e supõe as quatro anteriores, derivando a proposta teórica contida na Representação do Eu  na Vida Cotidiana (1985). Obra caracterizada pelo autor como um “manual” descritivo da “vida social, principalmente aquela que é organizada dentro dos limites físicos de um prédio ou de uma fabrica.”(1985, p.9)

Desta forma trabalha conceitos específicos que permitem uma compreensão estrutural do comportamento social nos estabelecimentos concretos, estudados  do ponto de vista da manipulação da impressão. Para tanto será necessário situar os conceitos adotados pelo autor em sua obra  Representação do Eu na vida Cotidiana:

a)      Representação: “toda a atividade de um indivíduo que se passa num período caracterizado por sua presença contínua diante de um grupo particular de observadores e que tem sobre estes alguma influência”(1985, p.29)

b)      Interação: “a influência recíproca dos indivíduos sobre as ações uns dos outros, quando em presença física imediata” (1985, p.23)

c)      Papéis discrepantes:os estranhos “que nem participam do espetáculo, nem o observam” (…) “nem conhecem os segredos da representação, nem a aparência da realidade que ela cria”.(1985, p.135)

d)     Atores: “aqueles que representam.”(…) Estes “têm consciência da impressão que criam e geralmente também possuem informação destruidora a respeito do espetáculo.”(1985, p.135)

e)      Plateia:  “aqueles para quem se representa. (…) Esta sabe o que lhe é permitido perceber, capacitada por aquilo que pode captar, de maneira não oficial, por uma observação mais apurada. (…) conhece a definição da situação alimentada pela representação, mas não possui informação destruidora  a respeito dela.”(1985, p.135)

f)       Equipe:“qualquer grupo de indivíduos que cooperem na encenação de uma rotina particular.”(1985, p.78) – “unidade fundamental de referência”(1985, p.79). Pode ser utilizado, também, o termo equipe de representação, sendo composta por um ou mais de um ator.

g)      Desempenho:toda atividade de um determinado participante, em dada ocasião, que sirva para influenciar, de algum modo, qualquer um dos participantes.”(1985, p.23)

h)      Região: “qualquer lugar que seja limitado de algum modo por barreiras à percepção” (1985, p.101). As regiões podem ser definidas de dois modos: a de fachada e de fundos. Seguem suas definições e divisões contextuais:

h.1 Região de fachada – palco e plateia: “a parte do desempenho do indivíduo que funciona regularmente de forma geral e fixa com o fim de definir a situação para os que observam a representação (…)”, ou ainda, “(…) é o equipamento expressivo de tipo padronizado intencional ou inconscientemente empregado pelo individuo durante a apresentação”. (1985, p.29). É constituída pela fachada pessoal e cenário.

h.1.1 Fachada pessoal: item do equipamento expressivo, próprio do ator, que o seguem por toda parte. Podem ser fixos (sexo, raça, idade, fisionomia,…) ou transitórios (expressão facial, roupas,…). Os estímulos da fachada pessoal têm funções de revelar o status social do ator (aparência) e informar o papel do mesmo (maneira).

h.1.2 Cenário: “a mobília, a decoração, a disposição física e outros elementos do pano de fundo” (1985, p.29). Possui característica geográfica fixa, segundo o autor.

h.2 Região de fundos – bastidores: “o lugar, relativo a uma dada representação, onde a impressão incentivada pela encenação é sabidamente contradita como coisa natural”(1985, p.106). Suas funções são:

h.2.1 fabricar “laboriosamente a capacidade de uma representação expressar algo além de si mesma”,

h.2.2 construir abertamente as ilusões e expressões,

h.2.3. guardar “os apoios do palco e os elementos da fachada pessoal”, como repertórios de ações e personagens,

h.2.4 esconder o tratamento diferenciado dos atores em relação aos que a platéia recebe, treinar ou excluir atores ineptos a determinado tipo de representação, entre outros.

i)        Percepção:“(…) forma de contato e participação”(1985, p.57)

j)        Impressão: percepção da platéia em relação à atuação do ator.

k)      Expressão: é a capacidade de dar impressões, espécies significativas de atividades. Quando são  transmitidas assumem um sentido estreito da comunicação – os símbolos verbais – e emitidas quando têm caráter amplo na gama de ações.

l)        Idealização: é o impulso que se tem quando se tenta mostrar ao mundo um aspecto melhor ou idealizado de si mesmo. “(…) o desejo de uma posição junto ao centro sagrado dos valores comuns da sociedade”(1985, p.42).

m)    Mistificação: um distanciamento necessário entre o ator e o público, evitando que o segundo descubra o segredo simulado da equipe dos bastidores, onde “o verdadeiro segredo por trás do mistério é que realmente não há mistério” (1985, p.69)

A representação do eu traz em cada conceito um ponto de alicerce para sua procedência. Desta forma há que se perceber a trama desta teorização de Goffman, partindo de alguns para abranger uma leitura do que esta obra quer “Representar”.

Para efeito didático utilizaremos uma distinção territorial ou regional, a fim de trabalhar tais conceitos num prisma dramatúrgico, utilizando os termos palco, platéia e bastidor como espaços próprios da interação “dramático-social”.

No palco

A equipe de atores transita entre os bastidores e a fachada, seguindo regras para definir uma situação perante seu público e impressioná-lo. Neste “espaço dramático”criam-se relações de familiaridade com seus pares, com quem busca criar um clima solidário para a preparação da representação, nos bastidores, e posteriormente o protagonismo na região de fachada.

O palco éespaço onde ator e personagem podem se fundir (ou confundir), mas também se diferenciar um do outro. O ator carece, muitas vezes, se esconder sob o personagem, para garantir que não haja rupturas da interação no espetáculo. Contudo se houver um bom  desempenho do ator em apresentar o personagem ao público, o personagem teráevidência, caso contrário receberáas críticas enquanto ator. E tanto de um lado quanto do outro estácondicionado àreação da platéia.

A representação, então, trata da aproximação e/ou distanciamento  ator-platéia, a fim de estabelecer uma relação interativa entre ambos.

 

Na plateia

Os observadores, aparentemente, estão numa postura passiva, mas percebem a representação do ator e o controla. Estes ocupam a região de fachada, servindo como equipe para o ator que dramatiza a situação, o que possibilita um processo comunicativo, “um tipo de jogo de informação”. (1985, p.17).

A assimetria do processo de comunicação se dáquando o ator busca manipular seu próprio comportamento, a fim de fazê-lo com a impressão da platéia, se comportando de modo imprevisto. Contudo Goffman afirma “que a arte de penetrar no esforço do indivíduo em mostrar uma inintencionalidade calculada parece mais bem desenvolvida do que nossa capacidade de manipular nosso próprio comportamento”(1985, p.17) . Isso denuncia a prevalência do observador sobre o ator, confirmando a assimetria do processo de comunicação na região de fachada.

No Bastidor

Ao falar da relação ator-público e da impressão a ser causada e/ou assumida, háuma direção própria da lógica coletiva e individual, que acaba invadindo o campo cultural, impondo ao espetáculo um ritmo, um tom, um tema, através da produção de valores, o que numa produção teatral se dános bastidores, onde a equipe de atores se prepara para apresentação do espetáculo. Esta preparação éregida por estratégias que objetivam manipular a impressão do público, o qual não tem acesso aos segredos da equipe.

A moral atravessa tais relações, e regula a representação, transformando os atores em “mercadores de moralidade”(1985, p.230), pois ao manipular impressões, visam proteger a relação com os observadores para evitar rupturas possíveis, ou ainda defender-se daquelas inevitáveis.

Ao separar região de fachada e de fundos, supõe uma sociedade estratificada e manipuladora. E ao diferenciar o ator do personagem não só elucida que a identidade é social, mas que a representação em si é instituída de fachada e fundo. Então o ator “se deixa” manipular pelo impacto da cena, ao estar diante de uma platéia faminta de impressão. O ator incorpora o personagem, que busca definir uma situação no grupo, em função de um modus vivendi interacional.

À guisa de conclusão

Na análise de Goffman, a estrutura das relações é reproduzida socialmente, mediante as características culturais de cada sociedade, as quais imprimem valores aos padrões adequados ou inadequados de  comportamento dos indivíduos e estabelecem uma hierarquia nas relações, a qual demarca a distância do ator em relação à platéia, assim como a sociabilidade entre a equipe de atores.

O distanciamento ator-público tem seu caráter necessário do ponto de vista idealizado e/ou mistificado, para que o público não descubra o “segredo” da equipe de atores na região de fundo, ou a possível incoerência entre o personagem e o ator; além do quê, assume um sentido instrumental na interação, pela necessidade consensual que a própria ordem social evidencia.

Este percurso, então, priorizou uma compreensão sobre os aspectos  sociopsicológicos e culturais da representação da vida cotidiana,  cujos conteúdos ampliam o entendimento dimensionando-os diante da vida nos territórios – palcos cotidianos das cenas e representações criadas dia a dia.  Tal compreensão aponta para uma discussão ética da Representação.

Bibliografia

GOFFMAN, Erving. A Representação do Eu na Vida Cotidiana. 8a.ed. Petrópolis:Vozes,1985.

 

Vanessa_cobogo2Profa. Dra. Vanessa Louise Batista

Departamento de  Fundamentos da Educação – FACED/UFC

vanessalouise10@gmail.com