ANÁLISE HISTÓRICA DO ENSINO JURÍDICO NO BRASIL NO SÉCULO XIX: ELITISMO E BACHERALISMO
A importação dos ensinamentos na educação doméstica ministrada por preceptores europeus nas classes dominantes implicou em uma desvalorização do nacionalismo na formação histórica dos países da América Latina. Os valores cultuados pelas elites nacionais eram de matriz eurocêntrica. Existia basicamente a reprodução de algumas características da cultura externa, com a rejeição das epistemologias ancestrais, o que acabou por retardar o verdadeiro sentimento de nação. A política e a educação reproduziam a subserviência dos valores sociais, reverberando na submissão econômica e social, apesar de toda uma gleba de riquezas étnico-culturais oriundas dos povos ancestrais.
Neste contexto, as minorias sociais e econômicas (negros e ameríndios) continuavam excluídas do acesso social à educação. No século XIX, o Estado monárquico brasileiro, já consolidado, criou algumas escolas destinadas à inclusão dos membros da elite na organização da burocracia estatal, mas não houve qualquer programa de educação das massas ou de grupos subalternos, sem maior expressão política , fazendo com que o Brasil, segundo Darcy Ribeiro[1], ainda fosse rotulado como uma nação de analfabetos.
Conforme assevera Boris Fausto[2] os primeiros dados gerais sobre a instrução mostram as enormes carências nessa área. Em 1872, entre os escravos, o índice de analfabetos atingia 99,9% e entre a população livre aproximadamente 80%, subindo mais de 86% os percentuais quando consideradas só as mulheres. Mesmo descontando-se o fato de que os percentuais se referem à população total, sem excluir crianças nos primeiros anos de vida, eles são bastante elevados. Apurou-se ainda que somente 17% da população entre 6 e 15 anos frequentava escolas. Havia apenas 12 mil alunos matriculados em colégios secundários. Entretanto, calcula-se que chegava a 8 mil o número de pessoas com educação superior no país.
Relativa mutação nos padrões educacionais brasileiros se deu com a inauguração dos cursos de ensino superior, com os valores meramente locais e familiares cedendo espaço a uma cultura regional e voltando-se à formação da burocracia estatal.
No plano jurídico observa-se que a colonização política reverberou no âmbito da construção da legislação, do ensino jurídico e das instituições, que, muitas vezes plasmaram-se em verdadeiras cópias das pré-existentes no sistema europeu continental. Mais uma vez reproduzia-se na América Latina um sistema importado e pouco adaptado aos anseios populares.
Para Keith S. Rosenn[3] vários fatores explicam a preponderância do formalismo no Brasil e, na verdade, em vários outros países latino-americanos também. A independência trouxe pouco alívio relativamente a leis inadequadas para as expectativas da sociedade brasileira. Em geral as leis brasileiras nunca foram autóctones. A maioria delas foi transplantada em massa da Europa ou dos Estados Unidos, infelizmente com pouca preocupação com a sua adaptabilidade às necessidades do Brasil.
No mesmo sentido Antônio Carlos Wolkmer[4] aduz: não é por demais relevante lembrar que, na América Latina, tanto a cultura jurídica imposta pelas metrópoles ao longo do período colonial, quanto as instituições jurídicas formadas após o processo de independência (tribunais, codificações e constituições) derivam da tradição legal europeia, representada, no âmbito privado, pelas fontes clássicas dos direitos romano, germânico e canônico. Igualmente, na formação da cultura jurídica e do processo de constitucionalização latino-americanos pós-independência, há de se ter em conta a herança das cartas políticas burguesas e dos princípios iluministas inerentes às declarações de direitos, bem como provenientes agora da nova modernidade capitalista, de livre mercado, pautada na tolerância e no perfil liberal-individualista. Nesse sentido, a incorporação do modo de produção capitalista e a inserção do liberalismo individualista tiveram uma função importante no processo de positivação do Direito estatal e no desenvolvimento específico do Direito público das antigas colônias ibéricas. Cabe reconhecer que o individualismo liberal e o ideário iluminista dos Direitos do Homem penetraram na América hispânica, no século XIX, dentro de sociedades fundamentalmente agrárias e, em alguns casos, escravagistas, em que o desenvolvimento urbano e industrial era praticamente nulo. Desse modo, a juridicidade moderna de corte liberal vai repercutir diretamente sobre as estruturas institucionais dependentes e reprodutoras dos interesses coloniais das metrópoles. Tem sido próprio na tradição latino-americana, seja na evolução teórica, seja na institucionalização formal do Direito, que as constituições políticas consagrassem, abstratamente, igualdade formal perante a lei, independência de poderes, soberania popular, garantia liberal de direitos, cidadania culturalmente homogênea e a condição idealizada de um “Estado de Direito” universal. Na prática, as instituições jurídicas são marcadas por controle centralizado e burocrático do poder oficial; formas de democracia excludente; sistema representativo clientelista; experiências de participação elitista; e por ausências históricas das grandes massas campesinas e populares.
Observa-se que a ideologia inspiradora da gênese do ensino jurídico brasileiro era a segurança jurídica plasmada na perpetuação dos interesses sócio-políticos na formação da elite nacional que necessitava ocupar cargos políticos na nascente organização burocrático-estatal. Após tantas mudanças contextuais, pode-se afirmar que há um novo ensino jurídico, cujo fundamento é a efetividade da democracia e da dignidade da pessoa humana na medida em que serve de mecanismo ético e garantidor do respeito e convivência harmoniosa entre os diversos grupos componentes da sociedade.
O bacharelismo foi uma característica marcante desde a sua gênese no período do Brasil Imperial. Com a Independência, o país herdou forte tradição escravista e ruralista. Fez-se necessário a criação de ideologia para que o Estado recém-nascido pudesse ocupar espaços legislativos, administrativos e jurídicos então vacantes. Um grande complicador neste desiderato é que no século XIX o Brasil era conhecido como um país de analfabetos.
Até o ano de 1823, ao menos no cenário legislativo do Império, não se aventava a ideia da criação de cursos jurídicos no Brasil, ao oposto da América espanhola, que ao final da fase colonial possuía mais de vinte universidades, sendo certo de que as duas primeiras foram instaladas em São Domingos, na atual Republica Dominicana e em Lima, no Peru. A América portuguesa (Brasil), não dispunha de nenhuma instituição de ensino superior, toda formação acadêmica, na área do direito, ocorria na Universidade de Coimbra[5].
Logo no início da vida político-institucional brasileira a alternativa mais crível foi o aproveitamento nos cargos públicos dos bacharéis egressos das elites rurais, com formação em Coimbra. Em um estádio mais avançado surgiram os primeiros Cursos de Direito no Brasil, quais sejam: São Paulo e Olinda/Recife, cujos discentes regra geral eram oriundos das classes dominantes (desejosas de manutenção e aumento dos privilégios político-econômicos).
Consoante Sérgio Buarque de Holanda[6], no Brasil, com o vício do bacharelismo, ostenta-se a tendência para exaltar a personalidade individual. A origem da sedução exercida pelas carreiras liberais vincula-se ao apego brasileiro aos valores da personalidade, desembocando em uma ânsia pelos meios de vida definitivos, que atribuem segurança e estabilidade, sem um mínimo de esforço pessoal, como sucede frequentemente no tocante aos cargos públicos.
Para Boris Fausto[7] do ponto de vista da formação da elite, o passo mais importante foi a fundação das faculdades de direito de São Paulo (1827) e de Olinda/Recife (1828). Delas saíram os bacharéis que, como magistrados e advogados, formaram o núcleo dos quadros políticos do Império.
Acerca da reforma do ensino jurídico na República Velha afirma Alberto Venâncio Filho[8] que o episódio mais importante do início da República, em matéria de ensino jurídico, é a concepção do denominado federalismo educacional, ao lado do federalismo político que a Carta de 1891 desejava introduzir. A reforma Benjamin Constant retoma sob novas bases a criação dos cursos e das faculdades livres, que começavam a surgir em vários estados, quebrando assim o duopólio das tradicionais escolas de Recife e São Paulo. A primeira é a da Bahia (1891), logo se seguindo no Rio de Janeiro a criação da Faculdade Livre de Direito (1891) e a Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais (1891). Em 1892 criou-se a Faculdade Livre de Direito de Minas Gerais. Na década seguinte, surgem as Faculdades de Direito do Pará, em 1902, do Ceará, em 1903 e do Amazonas, já na outra década, em 1912.
Consoante o diagnóstico de Keith S. Rosenn[9] a educação jurídica brasileira tem sido basicamente formalista. Uma importância quase exclusiva é dada à exegese clássica de textos legais formais. Pouca atenção é dada ao exame como as normas funcionam na prática. O estudo jurídico tem se concentrado na compreensão de normas legais e tem ignorado a conduta das pessoas afetadas por essas normas.
A cultura jurídico-educacional do período imperial não era acadêmica, uma vez que as grandes obras e os grandes nomes não se dedicaram ao ensino. Embora tenham sido criadas na mesma época, a sistemática educacional das duas Faculdades de Direito (São Paulo e Olinda/Recife) eram bastante diversas, além disso a cultura jurídica do Império, embora erudita, não era propriamente acadêmica, uma vez que a maioria dos egressos acabavam por dedicar-se à composição da burocracia estatal e à política partidária.
Nesse contexto, os cursos jurídicos expressavam a necessidade do Estado Liberal de formação da elite social, econômica, política e jurídica do Brasil. A magistratura representava, em boa parte do século XIX o ponto de partida para uma carreira nas funções públicas mais importantes, o que incluía disputar eleições como candidato e integrar-se ao jogo político-partidário. A renovação dos juízes por meio do ingresso de novos membros modificava de modo apenas parcial o quadro das ingerências partidárias no Judiciário. As correntes partidárias de então (liberais e conservadores) mantinham, a preocupação com o crescimento do número de juízes compromissados com os seus partidos.
A realidade do ensino jurídico no Século XIX revela que o discurso liberal incorporou-se ao Estado patrimonialista, com a contribuição indispensável do bacharel, sem que se lhe modificasse a sua substância. Os bacharéis apropriaram-se dos cargos públicos e confirmaram uma prática (conservadora) incompatível com o discurso teórico (liberal).
* Doutorando em Direito Constitucional pela UFC. Mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor Assistente do Departamento de Direito Privado da Faculdade de Direito da UFC de Direito Civil II e Direito Agrário. Especialista em Direito Processual Penal pela ESMEC/UFC. Coordenador da Graduação em Direito da UFC. E-mail: williamarques.jr@gmail.com
[1] RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2.006, págs. 230 e 231: “O Estado monárquico se consolida, renova e amplia nas décadas seguintes. Anteriormente, uns quantos clérigos e administradores coloniais, uns poucos militares profissionais e bacharéis com formação universitária, graduados no Reino, podiam dar conta das necessidades. Agora, torna-se indispensável criar escolas médias e superiores que formem as novas gerações de letrados para a magistratura e o Parlamento, de bacharéis nativos, de engenheiros militares para a defesa, e de médicos para cuidar da saúde dos ricos. A cultura vulgar e, com ela, a maioria das técnicas produtivas, entregues a seus produtores imediatos, só muito lentamente começariam a modernizar-se. Como à criação das escolas para as elites não correspondeu a qualquer programa de educação de massas, o povo brasileiro permaneceu analfabeto”.
[2] FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. 2ª- edição. 3ª- reimpressão. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010, pág. 134.
[3] ROSENN, Keith S. O jeito na cultura jurídica brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 1.998, pág. 61.
[4] WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo e crítica do constitucionalismo na América Latina. In: Anais do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional. Curitiba: Academia Brasileira de Direito Constitucional, 2010, pág. 146.
[5] Confira-se: NASPOLINI SANCHES, Samyra. H. D. F.; BENTO, Flávio. A História do Ensino do Direito no Brasil e os avanços da portaria 1886 de 1994. Disponível em:˂ http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/Anais/sao_paulo/2408.pdf˃. Acesso em: 07 de Julho de 2014. Em idêntico sentido veja-se: VENÂNCIO FILHO, Alberto. Análise histórica do Ensino Jurídico no Brasil In: RAMOS, Guiomar Feitosa de Albuquerque Lima. Encontros da UNB. Ensino jurídico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1978, pág. 13.
[6] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª- edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1.995, pág. 157.
[7] FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. 2ª- edição. 3ª- reimpressão. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010, pág. 134.
[8] VENÂNCIO FILHO, Alberto. Análise histórica do Ensino Jurídico no Brasil In: RAMOS, Guiomar Feitosa de Albuquerque Lima. Encontros da UNB. Ensino jurídico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1978, págs. 25 e 26.
[9] ROSENN, Keith S. O jeito na cultura jurídica brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 1.998, pág. 62.
Prof. William Paiva Marques Júnior
Docente do Curso de Direito – UFC
williamarques.jr@gmail.com