PARADIGMAS CONTEMPORÂNEOS INFORMATIVOS DA SUPERAÇÃO DA CRISE NO ENSINO JURÍDICO BRASILEIRO

Como resultado da reprodução de uma ideologia estanque e reducionista, fundada na dogmática juspositivista, surge o cenário de crise no ensino jurídico brasileiro. A ideologia acadêmica estava totalmente descompromissada com a possibilidade de um espírito científico pós-crítico, propositivo e inovador.

Aduz José Eduardo Faria[1]em termos históricos, a transição dos antigos para os novos paradigmas da dogmática jurídica foi deflagrada pela emergência do modo capitalista de produção, isto é, pela substituição do capital concorrencial pelo capitalismo monopolista; e foi acelerada pela institucionalização de novas formas organizacionais no âmbito do Estado Liberal, mediante a consolidação de anéis burocráticos que ampliaram sua capacidade de direção e controle do processo produtivo visando reajustá-lo estruturalmente às novas exigências da lógica do capital. Daí, subjacente ao aumento do poder discricionário do Executivo e à “tecnicização” do poder político, a “publicização” do direito privado e a “administrativização” do direito público, de um lado dissolvendo a tradicional rigidez hierárquica inerente à dogmática jurídica moderna e, de outro, trazendo consigo a ideia de legitimação mediante resolução dos problemas econômicos. A ruptura da divisão das fronteiras entre o direito privado e a assunção da titularidade de iniciativa legislativa pelas agências do Executivo se dá, basicamente, pela expansão das normas de organização: aquelas com as quais o Estado regula as suas próprias atividades.

A análise reducionista do Direito a um mero arquétipo normativo, o qual se limita a atribuir uma feição jurídica aos fatos sociais à medida que estes são enquadrados no esquema normativo vigente. A aludida concepção torna desnecessário o questionamento dos dogmas e reproduz os valores consagrados por décadas no ensino do Direito. Ou seja, ignora a discussão atinente à repercussão social normativa, valorizando exclusivamente seus aspectos teóricos. Essa análise abstrai os aspectos sociais, políticos, econômicos, filosóficos e históricos do fenômeno jurídico, por considerá-los secundários, de um lado destacando o racional-jurídico como universal e totalizante e, de outro, reduzindo a análise do Direito às estruturas normativas exegéticas, cartesianas e dogmáticas, muitas vezes totalmente alheia à complexa realidade social.

Faz-se necessária a superação do legalismo exegético-dogmático no ensino jurídico, mormente no tocante à conscientização e educação dos direitos fundamentais em todas as suas dimensões (individuais, sociais ou coletivos) uma vez que a concretização dos aludidos direitos ocorre em diversos âmbitos.

Repercutem como novo paradigma do ensino jurídico as transformações epistemológicas e hermenêuticas que acabaram por atribuir uma nova feição aos direitos fundamentais, com uma concepção cada vez mais democrática e aberta aos anseios emanados dos grupos sociais (ainda que minoritários).

O discurso jurídico sobre a evolução jurídica dos direitos fundamentais é repleto de visões maniqueístas, pois trata de opções econômicas que tendem a se converter em ideologias por grupos que ascenderam social e politicamente. Esta foi a concepção extraída a partir da história do constitucionalismo europeu clássico, fruto das conquistas burguesas que trataram de imprimir segurança jurídica aos institutos sobre os quais se assentavam as suas atividades profissionais.

A consagração dos direitos fundamentais (vida, liberdade, igualdade, propriedade, etc.) nos textos jurídico-constitucionais representa uma nova concepção da própria educação ministrada nos cursos jurídicos: doravante, haverá a primazia do social sobre o individual o que representa o inverso do quadro jurídico anterior marcado pelo liberalismo abstencionista estatal.

Os direitos fundamentais (que abrangem os direitos humanos constitucionalizados) surgem e se desenvolvem a partir das Cartas Constitucionais nas quais foram reconhecidos e assegurados, carecedores de implementação pelos Poderes Constituídos dos Estados através de políticas públicas, bem como da necessidade do advogado como figura vetorial e propulsionadora do ativismo jurisdicional.

Os direitos e as garantias fundamentais apresentam uma textura aberta, razão pela qual podem ser executados e concretizados de múltiplos modos com a participação proativa do profissional jurídico egresso de um ensino jurídico comprometido com a realidade social aberta, viva e transformadora.

Os novos paradigmas do ensino jurídico sob o ângulo da relação dialética travada entre direitos fundamentais e constitucionalização do direito são analisados a partir do prisma de mecanismo propiciador de respostas jurisdicionais justas e efetivas na resolução das demandas sociais. Neste contexto jurídico-epistemológico eis que avulta em importância a necessidade de revisão do ensino jurídico à luz da necessidade de formação de profissionais comprometidos com a transformação de velhos e arraigados vícios jurídico-institucionais como práticas burocráticas e excludentes.

A abertura do ensino jurídico aos ditames contidos nos direitos fundamentais, bem como na constitucionalização imanente à Ciência do Direito reconhece que a formação e a avaliação dos egressos nos cursos jurídicos não possuem o intento de encerrar-se em si mesmo, mas sim um propósito de alcançar o verdadeiro papel, que é o de possibilitar a concretização do direito substancial de efetivo acesso à justiça.

Neste jaez supera-se o modelo arcaico de exagerado apego às formas, em detrimento do próprio fim, suplantam-se os movimentos tendentes a tornar o ensino jurídico como uma ciência fechada, para se tornar um legítimo instrumento crítico e construtivo de pacificação social.

Muitas dos novos paradigmas do ensino jurídico constituem-se em corolário do novo conceito de acesso à justiça, construído a partir do reconhecimento dos novos direitos e da eficácia horizontal dos direitos fundamentais.

Conforme o escólio de Mauro Cappelletti e Bryant Garth[2] o esforço de criar sociedades mais justas e igualitárias centrou as atenções sobre as pessoas comuns – aqueles que se encontravam tradicionalmente isolados e impotentes ao enfrentar organizações fortes e burocracias governamentais. Nessas sociedades modernas, avançaram, nos últimos anos, no sentido de prover mais direitos substantivos aos relativamente fracos – em particular, aos consumidores contra os comerciantes, ao público contra os poluidores, aos locatários contra os locadores, aos empregados contra os empregadores (e os sindicatos) e aos cidadãos contra os governos.

Os novos direitos fundamentais (em especial os sociais), espalhados pelo texto constitucional, diferem da antiga natureza dos direitos subjetivos. Não se distinguem apenas por serem coletivos, mas por exigirem remédios distintos. Mais ainda, têm uma implicação política inovadora na medida em que permitem a discussão da justiça geral e da justiça distributiva[3].

À medida que a sociedade sofre mutações, surgem os novos direitos, muitos emergidos a partir de iniciativas emancipatórias na construção de uma democracia cidadã pluralista e inclusiva, fundada no valor justiça e na dignidade da pessoa humana (esta entendida como a base axiológica dos direitos fundamentais). O fenômeno ora em análise reverbera no plano do ensino jurídico.

Observa-se o surgimento dos novos direitos sob o prisma de uma percepção inovadora da realidade, ou seja, transfiguram-se os direitos convencionais em direitos com uma forte carga social, surgidos a partir de necessidades, conflitos e novas dificuldades de caráter sócio-político e ambiental, levantados pela presente sociedade em permanente crise, o que permite desdobramentos inovadores na formação dos profissionais jurídicos, e, em especial na pessoa do advogado (figura propulsora da atuação jurisdicional, criador de teses jurisprudenciais que, uma vez acolhidas pelo Poder Judiciário transfiguram toda uma realidade social).

Deve-se ressaltar que os novos direitos estão concatenados aos direitos que decorrem da cidadania inclusiva, e por isso, possibilitam a participação cidadã na gestão de um Estado mais democrático e participativo. Novas demandas passam a existir como reclamo social permanente e modo de reivindicação do ensino jurídico em diversas facetas: direitos civis, sociais, políticos, econômicos, humanos, culturais e ambientais.

Desta forma, a partir do reconhecimento de novos direitos (em especial dos cidadãos em face do Estado, na busca de implementação dos direitos fundamentais sociais), eis que advieram novas categorias de demandas, que requerem uma sensibilidade do profissional jurídico contemporâneo no trato com os jurisdicionados, de forma a fazer valer os valores imantes ao neoconstitucionalismo inclusivo. Este novo paradigma implica na reconstrução do ensino jurídico. Dentre os novos direitos, têm-se os atinentes ao multiculturalismo e os inclusivos de políticas públicas aos grupos sociais em situação de vulnerabilidade por motivos étnicos, raciais e religiosos que dependem de profissional habilitado para a efetivação prática dessas demandas.

O ensino jurídico almejado no século XXI não pode mais continuar a regular os novos direitos (meio ambiente, energia, bioética, biodireito, bioengenharia, consumidor, dentre outros), através de um procedimento exegético-dogmático, formalista e impessoal, faz-se premente a inclusão da sensibilidade em substituição à racionalidade cartesiana eurocêntrica. Trata-se de um ponto de mutação na metodologia do ensino jurídico na formação das gerações vindouras de juristas.

Ante o reconhecimento dos novos direitos e da eficácia horizontal dos direitos fundamentais a partir dos clamores sociais observa-se que o ensino jurídico como atualmente sistematizado encontra-se em decadência, carecedor de uma ampla reforma estrutural e transformadora.

A ambiência contemporânea do pós-positivismo informa o ensino jurídico mediante o compromisso com a exigência de justiça, diretriz esta que perpassa pelo fortalecimento da democracia, da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais subjacentes à ela.

Inegável que o fortalecimento dos direitos atinentes às minorias, corolário do multiculturalismo caracterizador do mundo hodierno, repercute necessariamente na problematização dos novos paradigmas dos currículos dos cursos jurídicos, corolário do reconhecimento dos novos direitos.

Uma cidadania plena, que combine liberdade, participação e igualdade para todos, é um ideal desenvolvido no Ocidente (talvez se mostre inatingível). Mas ele tem servido de parâmetro para o julgamento da qualidade da cidadania em cada país e em cada momento histórico. Tornou-se costume desdobrar a cidadania em direitos civis, políticos e sociais. O cidadão pleno seria aquele que fosse titular das três categorias de direitos aludidas. Cidadãos incompletos seriam os que possuíssem apenas alguns desses direitos. Os que não se beneficiassem de nenhum dos direitos seriam não cidadãos. Perpassa necessariamente pela questão da releitura da cidadania uma matriz curricular dos cursos jurídicos tendente ao acesso à justiça comprometido com os valores imanentes ao Estado Democrático de Direito.

Tais mutações na cultura judiciária perpassam necessariamente por uma reformulação dos cursos jurídicos na formação de profissionais jurídicos abertos às transformações sociais. Em um plano mais voltado ao acesso à justiça observa-se uma maior abertura do Poder Judiciário aos direitos humanos outrora violados. Busca-se uma cultura judiciária plural, democrática, cidadã e aberta às demandas de grupos historicamente colocados à margem do processo decisório.


* Doutorando em Direito Constitucional pela UFC. Mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor Assistente do Departamento de Direito Privado da Faculdade de Direito da UFC de Direito Civil II e Direito Agrário. Especialista em Direito Processual Penal pela ESMEC/UFC. Coordenador da Graduação em Direito da UFC. E-mail: williamarques.jr@gmail.com

[1] FARIA, José Eduardo. A noção de paradigma na ciência do Direito: notas para uma crítica do idealismo jurídico. In: FARIA, José Eduardo. A crise do Direito numa sociedade em mudança. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1988, pág. 23.

[2] CAPPELLETTI, Mauro. GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução: Ellen Gracie Northfleet. 1ª- edição. 2ª- reimpressão. Porto Alegre: Sergio Antonio  Fabris Editor, 2.002, pág. 91.

[3] LOPES, José Reinaldo de Lima. Direito subjetivo e direitos sociais: o dilema do Judiciário no Estado Social de Direito. IN FARIA, José Eduardo (organizador). Direitos humanos, direitos sociais e justiça.  1ª- edição. 4ª- tiragem. São Paulo: Malheiros, 2.005, pág. 127.

 

william paiva-h150Prof. William Paiva Marques Júnior

Docente do Curso de Direito – UFC
williamarques.jr@gmail.com